Inclusão ou desinclusão ? Uma análise do Decreto 10.502/2020
31
DE OUTUBRO DE 2020
Revista
Reação – Edição nº 134 - Especial de Aniversário
Romeu Kazumi Sassaki
Já durante a solenidade de assinatura do Decreto Nº 10.502, de 30/09/2020, denominado “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”, inúmeras manifestações de decepção, perplexidade, reprovação e repúdio, espalharam-se instantaneamente pelas redes sociais de todo o Brasil.
As manifestações, espontâneas, resultaram de dois
fatos lamentáveis:
Primeiro: Esse decreto contém medidas retrocessivas,
pois retornam a um período anterior a 1994 (época da aprovação da Declaração de
Salamanca, que oficializou a adoção de sistema educacional inclusivo, escolas
inclusivas para alunos com e sem deficiência). Nessa trajetória de volta ao
passado, as medidas atropelaram a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (que foi incorporada à Constituição Federal em 2008) e também a Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (que entrou em vigor em 2016).
Segundo: O conteúdo desse Decreto foi elaborado em silêncio por
um grupo que deve ter decidido não convidar pessoas e organizações defensoras
da educação inclusiva, quiçá temendo que estas poderiam atrapalhar. Prova do
silêncio foi a solenidade ter sido anunciada apenas na véspera para pegar todo
mundo de surpresa.
Tendo escrito ao longo dos últimos 23 anos, na
revista Reação, exatamente 134 artigos sobre a inclusão de pessoas com
deficiência, solidarizo-me com milhões de pessoas que ficaram decepcionadas e
perplexas, daí resultando a reprovação, o repúdio ao infeliz Decreto.
Com o intuito de colaborar, fiz uma análise do texto
e concluí que ele contém informações de dois tipos: (1) Compatíveis com o
discurso dos inclusivistas, parcialmente copiadas, adaptadas ou coladas
diretamente da Convenção da ONU e da LBI. (2) Favoráveis à volta do sistema
educacional segregado, paralelo e alternativo ao sistema educacional inclusivo.
No decorrer da análise, ficou evidente o raciocínio dos redatores do Decreto:
Usar uma parte do discurso inclusivista para dar a impressão de estarem
alinhados com a causa da educação inclusiva, assim auferindo aplausos, e então
impor as medidas segregativas que, para nós, são retrocessivas, equivocadas e
incompatíveis com as realizações positivas das escolas inclusivas nos últimos
20 anos.
Segue-se a análise na qual destaquei pontos
negativos presentes nas entrelinhas do Decreto.
I – Título da política nacional.
No título está o primeiro sinal de retrocesso. Em
setembro de 2007 (13 anos atrás), através do MEC, já havíamos avançado até o
patamar da inclusão, ao elaborar o texto “Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva”. Mas, o texto foi
questionado e forçou o então Ministro da Educação a modificar uma boa parte do
texto entregue em 2007. Ele então devolveu o texto ao Grupo de Trabalho para
reescrevê-lo no sentido de atender os questionadores. Daí resultou em 2008 o
novo documento mantendo o nome que já constava na versão de 2007 (versão esta,
por sinal, muito melhor que a de 2008).
II – Subtítulo do Decreto.
É estranho um ordenamento jurídico ter, além do
título, um subtítulo (neste caso, “Equidade, Inclusão e com Aprendizado ao
Longo da Vida”). Percebe-se aqui a intenção de agradar, com palavras bonitas,
tanto os favoráveis como os contrários à volta das escolas especiais em um
sistema separado. Além de constarem convenientemente como subtítulo, estes 3
temas apresentam problemas.
II.1 – Equidade. O que o conceito “equidade” significa para os formuladores do
Decreto? Pelo texto, parecem entender que ele seja um sinônimo de igualdade.
Não contando as vezes em que o texto cita o nome completo do Decreto, o
conceito “equidade” aparece 5 vezes: No art. 2º – III , no art. 4º – II, no
art. 4º – V, no art. 6º – e no art. 9º – III. A propósito, o
vocábulo equidade significa “julgamento justo” (Houaiss, 2009).
Assim, para respeitar o direito à mesma igualdade (conhecida como ‘igualdade
formal’) em pessoas e situações tão diferentes entre si, podemos praticar a
‘igualdade autêntica’ aplicando a equidade, ou seja, um julgamento justo na
medida das necessidades singulares de cada caso (OIT, 2018).
II.2 – Inclusão. Mais uma vez, o texto prepara a cabeça do leitor para
entender e aceitar que as medidas segregativas propostas no Decreto são
inclusivas ou, pelo menos, apontadas à “longínqua” meta da inclusão.
II.3 – com Aprendizado ao Longo da Vida. Mais um tema bonito, aliás tirado da
LBI, só que lá diz: “Compete ao poder publico garantir a dignidade da
pessoa com deficiência ao longo de toda a vida” (art. 10). Para a LBI, o
que é para fazer ao longo da vida? É garantir a dignidade da pessoa com
deficiência. No Decreto, não há nenhum artigo explicando como e quando será
realizado o “aprendizado do aluno ao longo da sua vida”. O art. 2º diz:
“aprendizado ao longo da existência do educando”, portanto extrapola o tempo de
duração da vida escolar.
III. Significados atrás de palavras.
O art. 1º diz que esta política nacional “implementará
programas e ações com vistas à garantia dos direitos à educação e ao
atendimento educacional especializado [AEE] aos educandos com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”.
Portanto, os autores do Decreto, ao dizerem: (1) “à educação e ao atendimento
educacional especializado”, entendem que o AEE não faz parte da educação,
o que é um erro de conceituação. (2) “o atendimento educacional especializado”,
entendem que o AEE é o mesmo que “escola especializada”, o que é um equívoco.
(3) “educandos com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento” (TGD),
entendem que os alunos com TGD não são alunos com deficiência, o que é uma
desinformação preocupante. (4) “educandos com deficiência e educandos com altas
habilidades ou superdotação”, entendem que os educandos com deficiência
não têm altas habilidades, o que é um entendimento preconceituoso tanto contra
estes alunos como contra os educandos com altas habilidades que têm
deficiência. (5) “altas habilidades ou superdotação”, mostram que não
acompanharam o avanço dos especialistas na conceituação desta condição, que
começou com o termo “superdotação”, depois eliminou oficialmente esse
termo e passou a adotar a expressão “altas habilidades” a partir da última
década do século 20. A expressão correta desde então é “pessoa com altas
habilidades”.
IV – Correções.
O art. 2º traz 11 considerações que merecem
correção, mediante supressões (palavras tachadas) e acréscimos (palavras
entre colchetes). Meus comentários serão apresentados em negrito.
IV.1 – “educação especial: modalidade de educação escolar
oferecida, preferencialmente, na rede regular [na rede comum de
ensino] aos educandos com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação [ao público-alvo descrito
art. 5º, caput, parágrafo único, incisos I, II e III, deste Decreto]”.
IV.2 – “educação bilíngue de surdos: modalidade de educação escolar que
promove a especificidade linguística e cultural dos educandos surdos,
deficientes auditivos e surdocegos [com surdez, baixa audição e
surdocegueira] que optam pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Líbras [Libras],
por meio de recursos e de serviços educacionais especializados, disponíveis em
escolas bilíngues de surdos e em classes bilíngues de surdos nas escolas regulares [comuns]
inclusivas, a partir da adoção da Líbras [Libras] como primeira
língua e como língua de instrução, comunicação, interação e ensino, e da língua
portuguesa na modalidade escrita como segunda língua”. Em todas as 9 vezes
em que aparece a expressão “Língua Brasileira de Sinais”, a sigla está
erroneamente grafada “Líbras”, com acento agudo na letra ‘i’, nos seguintes
artigos: art. 2º – II (2 vezes), VIII (2 vezes) e IX (2 vezes); art. 6º – III
(1 vez); art. 8º – III (1 vez) e VI (1 vez).
IV.3 – “política educacional equitativa: conjunto de medidas
planejadas e implementadas com vistas a orientar as práticas necessárias e
diferenciadas para que todos tenham oportunidades iguais e alcancem
os seus melhores resultados, de modo a valorizar ao máximo cada potencialidade,
e eliminar ou minimizar as barreiras que possam obstruir a participação plena e
efetiva do educando na sociedade”. Como se verifica, isso não é equidade (igualdade autêntica), é igualdade formal.
IV.4 – “política educacional inclusiva: – conjunto de medidas planejadas e
implementadas com vistas a orientar as práticas necessárias para desenvolver,
facilitar o desenvolvimento, supervisionar a efetividade e reorientar, sempre que necessário,
as estratégias, os procedimentos, as ações, os recursos e os serviços que
promovem a inclusão social, intelectual, profissional, política e os demais
aspectos da vida humana, da cidadania e da cultura, o que envolve não apenas as
demandas do educando, mas, igualmente, suas potencialidades, suas habilidades e
seus talentos, e resulta em benefício para a sociedade como um todo”. Mas,
a instituição de medidas retrocessivas contradiz com esta acolhida à “política
educacional inclusiva”. E para que acrescentar a expressão “sempre que
necessário”? Outras medidas são executadas sem necessidade?
IV.5 – “política de educação com aprendizado ao longo da vida: conjunto de
medidas planejadas e implementadas para garantir oportunidades de
desenvolvimento e aprendizado ao longo da existência do educando,
com a percepção de que a educação não acontece apenas no âmbito escolar, e de
que o aprendizado pode ocorrer em outros momentos e contextos,
formais ou informais, planejados ou casuais, em um processo
ininterrupto”. Dependendo de como e onde será realizado esse aprendizado,
pergunta-se: “em outros momentos e contextos” simultâneos com a vida escolar ou
posteriormente a ela?
IV.6 – “escolas especializadas: instituições de ensino planejadas para o
atendimento educacional aos educandos da educação especial que não se
beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares [comuns]
inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos”. Há
duas insinuações equivocadas na afirmação “educandos que não se beneficiam, em
seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas inclusivas e que demandam
apoios múltiplos e contínuos”: (1) “Todos os educandos não se beneficiam em
escolas inclusivas”. Não é verdade. (2) “As escolas inclusivas não oferecem
apoios múltiplos e contínuos”. Não é verdade. Em todo o caso, a ideia de
existirem “escolas especializadas” como alternativa às escolas inclusivas vai
contra o que está estabelecido na LBI e também na Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, cujo texto foi incorporado à Constituição Federal
em 2008. Portanto, essa ideia é frontalmente inconstitucional.
IV.7 – “classes especializadas: classes organizadas em escolas regulares [comuns]
inclusivas, com acessibilidade de arquitetura, equipamentos, mobiliário,
projeto pedagógico e material didático, planejados com vistas ao atendimento
das especificidades do público ao qual são destinadas, e que devem ser regidas
por profissionais qualificados para o cumprimento de sua finalidade”. A
adoção de um sistema educacional inclusivo pressupõe que todas as classes são
inclusivas, não havendo necessidade ou justificativa para a instalação de
classes especializadas. Ao afirmar “classes especializadas… com vistas ao
atendimento das especificidades”, o Decreto mostra que não está entendendo
corretamente a diferença entre uma sala de aula e o espaço ocupado pelo
AEE.
IV.8 – “escolas bilíngues de surdos: instituições de ensino da rede regular [comuns]
nas quais a comunicação, a instrução, a interação e o ensino são realizados
em Líbras [Libras]como primeira língua e em língua portuguesa na
modalidade escrita como segunda língua, destinadas a educandos surdos [com
surdez], que optam pelo uso da Líbras [Libras], com deficiência auditiva,
[educandos com baixa audição], [educandos com] surdocegos [surdocegueira], surdos com outras deficiências associadas [educandos
com surdez associada a outras deficiências] e surdos [educandos com surdez
e com altas habilidades ou superdotação”].
IV.9 – “classes bilíngues de surdos: classes com enturmação de
educandos surdos, com deficiência auditiva e surdocegos [com
surdez, com baixa audição e surdocegueira], que optam pelo uso da Líbras [Libras],
organizadas em escolas regulares [comuns] inclusivas, em que a Líbras [Libras]
é reconhecida como primeira língua e utilizada como língua de comunicação,
interação, instrução e ensino, em todo o processo educativo, e a língua
portuguesa na modalidade escrita é ensinada como segunda língua”.
IV.10 – “escolas regulares [comuns] inclusivas: instituições de
ensino que oferecem atendimento educacional especializado aos educandos da educação especial descritos
no art. 5º, caput, parágrafo único, incisos I, II e III, deste Decreto. em
classes regulares [comuns], classes especializadas ou salas de
recursos”.
IV.11 – “planos de desenvolvimento individual e escolar: instrumentos
de planejamento e de organização de ações, cuja elaboração, acompanhamento e
avaliação envolvam a escola, a família, os profissionais do serviço de
atendimento educacional especializado, e que possam contar com outros
profissionais que atendam educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação [educandos-alvo
descritos no art. 5º caput, parágrafo único, I, II e III]. O plano de
desenvolvimento individual (PDI), do original em inglês “individualized
education plan (IEP), recebeu no Brasil outros nomes: plano
individualizado de educação (PIE) e programa individualizado de educação (PIE).
O Decreto carece de clareza no entendimento sobre o que são e como se
diferenciam os seguintes tópicos da Política Nacional: princípios, diretrizes e objetivos.
Em consequência, alguns exemplos de cada tópico aparecem em outros tópicos,
gerando confusão de entendimentos.
Entre os princípios (art. 3º), é um
retrocesso a “alternativa educacional mais adequada”. Essa
expressão camufla o termo “escola especial”.
Entre
as diretrizes, as mais retrocessivas são: (1) “oferecer atendimento
educacional especializado e de qualidade, em classes e escolas inclusivas,
classes e escolas especializadas ou classes e escolas bilíngues de surdos a
todos que demandarem esse tipo de serviço”. Por que a condição “de
qualidade” foi citada somente em relação ao AEE? Os demais contextos e áreas da
educação já são de qualidade? Por que a insinuação de que somente as escolas
especializadas oferecem essa qualidade? (2) “priorizar a participação do
educando e de sua família no processo de decisão sobre os serviços e os
recursos do atendimento educacional especializado”. As mesmas perguntas do
item anterior.
Entre os objetivos, alguns são citados,
equivocadamente, como exclusividade dos “educandos da educação
especial”, tais como: “promover ensino de excelência”, “assegurar
acessibilidade a sistemas de apoio adequados”, “valorizar o processo que
contribui para a autonomia, o desenvolvimento e a participação efetiva no
desenvolvimento da sociedade, no âmbito da cultura, das ciências, das artes e
das demais áreas da vida”. Então, os alunos que não forem da “educação
especial” não serão atendidos com esses objetivos?
Entre os serviços e recursos,
consta a citação de 4 “centros de AEE” e 2 “serviços de AEE”, além de
“escolas-polo de AEE”, o que configura o entendimento equivocado sobre o que
seja o AEE”. Citam-se também os centros de atividades de altas
habilidades” e “centros de capacitação de profissionais da educação e de
atendimento às pessoas com surdez”. Curiosamente, as escolas
especializadas e as classes especializadas, bem como os “materiais
didático-pedagógicos adequados e acessíveis” constam como sendo “serviços
e recursos”.
No art. 8º, ao incluir uma relação profissionais que prestam serviços de educação especial,
o Decreto determina que eles atuarão de forma colaborativa.
O art. 13 diz: “A colaboração dos entes federativos ocorrerá por meio
de adesão voluntária”. Seria necessário explicar as expressões
“forma colaborativa” e “colaboração”, para não dar a ideia de “trabalhar sem
remuneração”.
As 7 ações, no art. 9º, contém os mesmos equívocos na sua formulação que já tratei anteriormente. Mas, as citadas nos incisos III e IV são mais preocupantes, pois dizem: “definição de critérios de identificação, acolhimento e acompanhamento dos educandos que não se beneficiam das escolas inclusivas, de modo a proporcionar o atendimento educacional mais adequado, em ambiente o menos restritivo possível” e “definição de diretrizes da educação especial para o estabelecimento dos serviços e dos recursos de atendimento educacional especializado”.
A classificação do público-alvo (art. 5º) precisaria ser refeita para eliminar a superposição de pessoas com deficiência e outras condições, por um lado, e a ausência de pessoas com determinada deficiência, por outro.
No art. 10, entre os 6 mecanismos de avaliação e de monitoramento desta
Política Nacional, é citado no inciso IV: “plano de desenvolvimento
individual [PDI]”. O PDI ou PIE, já comentado no item IV.11, é um instrumento
de uso direto entre o educando, a escola, a sua família e outra pessoa
significante. Portanto, não é, a rigor, um mecanismo para avaliar e monitorar
políticas.
Diante da análise feita no Decreto nº 10.502/2020,
chego à conclusão de que a nova política nacional é sobre desinclusão,
infelizmente.