SENADO FEDERAL PROJETO DE DECRETO LEGISLATIVO N° 437, DE 2020 Susta, nos termos do art. 49, V, da Constituição Federal, a aplicação do Decreto Federal nº 10.502 de 30 de setembro de 2020, que cria a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida
AUTORIA: Senador Fabiano Contarato (REDE/ES), Senadora Mara Gabrilli (PSDB/SP) DOCUMENTOS: - Texto do projeto de decreto legislativo - Legislação citada
PROJETO DE DECRETO LEGISLATIVO Nº , DE 2020 Susta, nos
termos do art. 49, V, da Constituição Federal, a aplicação do Decreto Federal
nº 10.502 de 30 de setembro de 2020, que cria a Política Nacional de Educação
Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida.
O CONGRESSO NACIONAL decreta: Art. 1º Fica sustado, nos
termos do art. 49, inciso V, da Constituição Federal, o Decreto nº 10.502, de
30 de setembro de 2020, que cria a Política Nacional de Educação Especial:
Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Art. 2º Este Decreto
Legislativo entra em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICAÇÃO
Em 30 de setembro de 2020, o atual Governo Federal instituiu
a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com
Aprendizado ao Longo da Vida (PNEE). No entanto, o Decreto Federal que regula
tal Política vai de encontro à legislação brasileira, entre elas a Convenção da
ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil em
2008 com status de Emenda à Constituição, nos termos do art. 5º, § 3º, da
Constituição da República Federativa do Brasil1 . Isso significa dizer que toda
a legislação infraconstitucional deve atenção máxima aos ditames convencionais,
tal como concretizado pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência
(Lei nº 13.146/2015).
(1) Decreto Legislativo n º 186, de 9 de julho de 2008 e
Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.
A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi o primeiro tratado de direitos humanos do Século XXI. Trata-se de documento fruto de um modelo inovador de construção de um tratado internacional no âmbito do Sistema da Organização das Nações Unidas – ONU. Isso porque, além de representantes diplomáticos dos Estados Partes, participaram de sua elaboração a sociedade civil internacional organizada atuante na área da pessoa com deficiência. Esta, regida, sobretudo, pelo lema que circula entre o movimento desde meados dos anos 1980 e que apareceu pela primeira vez, em um documento internacional, na Declaração de Madrid (2002): Nada sobre nós sem nós! Nem mesmo a resistência de alguns países foi capaz de excluir a participação, na construção do texto da Convenção, daqueles que têm suas vidas mudadas e impactadas cotidianamente, ora por ações de afirmação e promoção de seus direitos, ora por iniciativas fundadas em discriminação e preconceito.
A Convenção da ONU consagrou uma mudança paradigmática na
concepção da deficiência. Esta mudança resultou da atuação de movimentos de
defesa e promoção dos direitos à liberdade e à igualdade deste grupo, ao
amadurecimento da sociedade e, sobretudo, do reconhecimento social, político e
científico da deficiência como um atributo da sociedade e não do indivíduo. A
deficiência – até então considerada uma condição médica e estática da pessoa
que a possuía, ou seja, uma “anormalidade” física, mental, cognitiva ou
sensorial de seu “portador” – sobrevém, atualmente, como o resultado da falta
de respostas que a sociedade e Estado oferecem às características de cada um.
Está-se, pois, diante de uma nova concepção da deficiência – denominada
“social” –, em substituição ao modelo médico pretérito. O impacto desta transformação
não poderia ser outro, senão uma mudança de paradigma no enfrentamento de
questões e soluções relativas à deficiência, bem como na implantação de ações e
políticas públicas destinadas a garantir a plena inclusão na sociedade de
pessoas sem discriminação em razão de suas diferentes formas de se locomover,
de ouvir, de ver, de pensar, de aprender, de existir.
Entre os muitos direitos afirmados na Convenção está o
Direito à Educação Inclusiva, expresso em seu artigo 24, in verbis: Artigo 24
SF/20458.58883-47 Página 3 de 9 Avulso do PDL 437/2020. Educação
1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com
deficiência à educação. Para efetivar esse direito sem discriminação e com base
na igualdade de oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema
educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de
toda a vida, com os seguintes objetivos: a) O pleno desenvolvimento do
potencial humano e do senso de dignidade e auto-estima, além do fortalecimento
do respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela
diversidade humana; b) O máximo desenvolvimento possível da personalidade e dos
talentos e da criatividade das pessoas com deficiência, assim como de suas
habilidades físicas e intelectuais; c) A participação efetiva das pessoas com
deficiência em uma sociedade livre.
2.Para a realização desse direito, os Estados Partes
assegurarão que:
(a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do
sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com
deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do
ensino secundário, sob alegação de deficiência;
(b) As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino
primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em
igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem;
(c) Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades
individuais sejam providenciadas;
(d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário,
no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva
educação;
(e) Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam
adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de
acordo com a meta de inclusão plena.
3.Os Estados Partes assegurarão às pessoas com deficiência a
possibilidade de adquirir as competências práticas e sociais necessárias de
modo a facilitar às pessoas com deficiência sua plena e igual participação no
sistema de ensino e na vida em comunidade. Para tanto, os Estados Partes
tomarão medidas apropriadas, incluindo: a) Facilitação do aprendizado do
braille, escrita alternativa, modos, meios e formatos de comunicação
aumentativa e alternativa, e habilidades de orientação e mobilidade, além de
facilitação do apoio e aconselhamento de pares; b) Facilitação do aprendizado
da língua de sinais e promoção da identidade lingüística da comunidade surda;
c) Garantia de que a educação de pessoas, em particular crianças cegas,
surdocegas e surdas, seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de
comunicação mais adequados ao indivíduo e em ambientes que favoreçam ao máximo
seu desenvolvimento acadêmico e social.
4.A fim de contribuir para o exercício desse direito, os
Estados Partes tomarão medidas apropriadas para empregar professores, inclusive
professores com deficiência, habilitados para o ensino da língua de sinais e/ou
do braille, e para capacitar profissionais e equipes atuantes em todos os
níveis de ensino. Essa capacitação incorporará a conscientização da deficiência
e a utilização de modos, meios e formatos apropriados de comunicação
aumentativa e alternativa, e técnicas e materiais pedagógicos, como apoios para
pessoas com deficiência. 5.Os Estados Partes assegurarão que as pessoas com
deficiência possam ter acesso ao ensino superior em geral, treinamento
profissional de acordo com sua vocação, educação para adultos e formação
continuada, sem discriminação e em igualdade de condições. Para tanto, os
Estados Partes assegurarão a provisão de adaptações razoáveis para pessoas com
deficiência. (grifamos) Nota-se que o dispositivo em destaque é categórico em
afirmar a obrigatoriedade dos Estados Partes em implementar um sistema
educacional inclusivo, cuja política não pode criar mecanismos de segregação e
exclusão em razão da deficiência. E, como já afirmado, o Brasil não está imune
a essa obrigatoriedade já que o Congresso Nacional ratificou a Convenção da ONU
com status de Emenda à Constituição.
A Política Nacional de Educação Especial: Equitativa,
Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida ora instituída pelo Decreto
Federal nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, prevê a existência de escolas e
classes especializadas (art. 2º, VI e VII) em substituição às escolas de ensino
regular, sendo as primeiras instituições de ensino voltadas especificamente
para educandos com deficiência e as segundas, classes organizadas – dentro de
escolas regulares – que atendem somente educandos com deficiência.
A Convenção da ONU ainda traz em seu artigo 19, o
reconhecimento do direito a vida independente e inclusão na comunidade. Neste
aspecto, os Estados Partes devem assegurar que as pessoas com deficiência vivam
e sejam incluídas na comunidade e evitar que fiquem isoladas ou segregadas.
Outra obrigação prevista na Convenção e incorporada à nossa Constituição é,
quando da elaboração e implementação de legislação e políticas relativas às
pessoas com deficiência, a necessidade de realização de consultas estreitas que
envolvam ativamente as pessoas com deficiência, inclusive crianças com
deficiência, por intermédio de suas organizações representativas. Tais
consultas não foram feitas como atestam depoimentos colhidos nos principais
veículos de comunicação do país repercutindo a publicação do Decreto nº 10.502
de 2020.
Em reportagem no Estadão2 , Antônio Carlos Sestaro,
presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down – FBASD,
afirmou:
“Propor escolas e classes especializadas é um retorno à
exclusão. Como há dificuldades para acesso à educação regular, o governo culpa
o aluno e não o sistema educacional. É uma sutil retomada das escolas
especiais, cedendo à pressão de instituições que atuam nesse segmento e querem
dinheiro do Fundeb”.
Carolina Videira, idealizadora da Turma do Jiló, associação
sem fins lucrativos que visa implementar e garantir a educação inclusiva dentro
das escolas públicas, também criticou a PNEE 2020:
“A PNEE 2008, que está sendo duramente atacada, buscava
assegurar a milhares de crianças e adolescentes o seu lugar entre os pares de
sua geração. Uma ferramenta essencial no combate à segregação e à violência que
os jovens com deficiência são expostos diariamente em nosso País”.
Luiza Correa, coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo
Mendes, organização sem fins lucrativos cuja missão é de colaborar para que toda
pessoa com deficiência tenha uma educação de qualidade na escola comum, disse o
seguinte:
“A Nova Política de Educação Especial representa um
retrocesso em 30 anos de luta pela inclusão. Uma sociedade verdadeiramente
inclusiva depende da convivência com a diversidade e a escola regular cumpre
esse papel (...)”.
Convém dizer que o atual decreto é contrário à legislação
brasileira, de modo que é aplicável ao caso o art. 49, V, da Constituição
Federal, que prevê como competência exclusiva do Congresso Nacional a sustação
de atos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar.
Vale ressaltar ainda a ratificação – igualmente com status
constitucional – do Protocolo Facultativo à Convenção, segundo o qual o Brasil
reconhece a competência do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, “para receber e considerar comunicações submetidas por pessoas ou
grupos de pessoas, ou em nome deles, sujeitos à sua jurisdição, alegando serem
vítimas de violação das disposições da Convenção pelo referido Estado Parte”.
(2) Link:
https://brasil.estadao.com.br/blogs/vencer-limites/especialistas-em-inclusao-escolar-reprovamnova-politica-de-educacao-especial-e-pedem-revogacao-de-decreto/.
Acesso em 02 de outubro de 2020. SF/20458.58883-47 Página 6 de 9 Avulso do PDL
437/2020.
O Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
emitiu a Observação Geral nº 4 (2016) sobre a aplicação do direito à educação
inclusiva previsto no art. 24 acima citado. O Comitê demonstrou preocupação com
o grande número de pessoas com deficiência sendo educadas em estruturas
isoladas das demais:
Si des progrès ont été accomplis, le Comité est toutefois
préoccupé par les sérieux problèmes qui perdurent. Des millions de personnes
handicapées sont toujours privées de leur droit à l’éducation et plus
nombreuses encore sont celles qui ont seulement accès à une éducation de
qualité médiocre, dans des structures où elles sont isolées des autres.
Em tradução livre: Ainda que progressos estejam sendo
realizados, o Comité está preocupado com sérios problemas que perduram. Milhões
de pessoas com deficiência são privadas de seu direito à educação e muitas
outras somente têm acesso a uma educação de qualidade medíocre, em estruturas
onde elas estão isoladas das demais. (grifos nossos)
Nesse sentido, o Comitê indicou que os Estados Partes devem
ter um sistema educativo que providencie a inclusão de todos os alunos,
especialmente daqueles que apresentam deficiência, em todos os níveis de ensino(3)
.
(3)Conformément au paragraphe 1 de l’article 24 de la
Convention, les États parties doivent faire en sorte que les personnes
handicapées exercent leur droit à l’éducation, grâce à un système éducatif qui
pourvoie à l’inclusion de tous les élèves, notamment de ceux qui présentent un
handicap, à tous les niveaux d’enseignement, y compris aux niveaux primaire,
Secondaire et tertiaire, dans la formation professionnelle et la formation
permanente, dans les activités extrascolaires et sociales, sans discrimination
et sur la base de l’égalité avec les autres.
Também é importante citar a Lei Brasileira de Inclusão
(Estatuto da Pessoa com Deficiência - Lei Federal nº 13.146/2015), que tem como
base a Convenção supracitada e seu Protocolo Facultativo.
O Estatuto prevê o direito à educação inclusiva (art. 27,
caput e art. 28, I). Para tanto, o sistema educacional deve ser aprimorado para
“garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por
meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as
barreiras e promovam a inclusão plena” e providenciar “serviços e adaptações
razoáveis, para atender às características dos estudantes com deficiência e
garantir o seu pleno acesso ao currículo em condições de igualdade” (art. 28, II
e III). Ora, ao tratar aprimoramento e adaptação, o Estatuto nada mais faz do
que determinar a melhoria das escolas regulares existentes e não a criação de
escolas separadas. Fica claro, portanto, que Política Nacional de Educação
Especial é excludente, ilegal e incompatível com todas as normas supracitadas.
Por todos os motivos expostos, pedimos apoio dos Pares na aprovação deste
Projeto de Decreto Legislativo.
Sala das sessões,
Senador FABIANO CONTARATO (Rede/ES)
Senadora MARA GABRILLI (PSDB/SP)