REDE REGIONAL PELA EDUCAÇÃO INCLUSIVA
AMÉRICA LATINA
À sua Excelência
Sr. Rossieli Soares da Silva
Ministro de Estado da Educação
no Brasil
Ministério da Educação
Esplanada dos Ministérios
Brasília-DF
Buenos Aires, 5 de setembro de 2018
Assunto: Revisão da Política
Nacional de Educação Especial com vista à Educação Inclusiva no Brasil
Caro Sr. Rossieli Soares Da
Silva,
Dirigimo-nos a V.Exa., em nome da Rede Regional pela Educação Inclusiva na
América Latina (RREI - América Latina), a fim de manifestar a nossa preocupação
com a proposta de revisão da Política Nacional de Educação Especial na
perspectiva da Educação Inclusiva que foi anunciada por seu Ministério. Esta
proposta, tal como apresentada, representa um grave retrocesso em relação às obrigações
assumidas pelo Brasil no plano internacional e aos padrões alcançados por este
país no âmbito da educação inclusiva, razão pela qual solicitamos que sejam
interrompidas as ações para revisá-la.
A Rede Regional pela Educação Inclusiva na América Latina é uma coalizão de organizações[1] de e para pessoas com
deficiência, familiares e direitos humanos, da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai, Peru e Uruguai, que lutam
em defesa do direito das pessoas com deficiência receberem educação inclusiva em uma escola
para todas/os. Seu objetivo é influenciar politicamente em nível
nacional, regional e internacional para que os Estados garantam o direito de
todas as pessoas – com ou sem deficiência
– a uma educação inclusiva, em conformidade com os mandatos internacionais, em
particular com o artigo 24 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (CDPD), e com o objetivo número 4 do Desenvolvimento Sustentável.
A sistemática vulneração do
direito à educação das pessoas com deficiência nos países da América Latina foi
o que motivou a criação da RREI, em 2015, fato que ainda hoje persiste. Na verdade, muitas dessas pessoas estão
absolutamente excluídas do sistema educacional, algumas são obrigadas a frequentar escolas segregadas,
e outras frequentam escolas gerais, mas sem que
sejam implantadas mudanças que garantam uma aprendizagem em igualdade de
condições, seguindo pelo caminho contrário ao que está disposto no artigo 24 da
CDPD, e em todos os tratados internacionais que reconhecem o direito à educação
sem discriminação. Esta situação só poderá ser corrigida por meio do
estabelecimento de um sistema educacional plenamente inclusivo, que receba
todos os estudantes nas mesmas escolas e que seja capaz ensinar cada pessoa, em
condições de dignidade, qualidade e equidade.
Conforme expresso neste documento, o direito de todas
as pessoas com deficiência de receber educação inclusiva está reconhecido no
artigo 24 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD),
aprovada pelas Nações Unidas em 2006. Este tratado, que foi assinado por mais
de 160 países em 2007, foi aprovado pelo Congresso Brasileiro, por
meio do Decreto Legislativo nº 186 em 2008, e promulgado em 2009 pelo Decreto
nº 6.949. Além disso, nos termos do § 3, art. 5 da Constituição Federal de
1988, o CDPD tem status de emenda constitucional no Brasil.
Em consonância com os preceitos do CDPD, em 2008 a
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
(PNEEPEI) foi aprovada no Brasil, fato que constitui um marco para garantir o
direito fundamental à educação, ao conceituar a Educação Especial como uma
modalidade transversal de apoio aos estudantes com deficiência em escolas
comuns e em todos os níveis através da Atenção Educacional Especializada (AEE).
O objetivo da AEE é identificar e eliminar barreiras à participação dos
estudantes com deficiência, promovendo a acessibilidade e a igualdade.
A Lei Brasileira de Inclusão – LBI (Lei nº 13.146/2015),
promulgada em 2015, prevê, em seu artigo 27, que a educação constitui um
direito humano fundamental da pessoa com deficiência; além disso, a referida lei também garante um sistema
educacional inclusivo em todos os níveis, bem como a aprendizagem ao longo da
vida, para que pessoas com deficiência possam alcançar o máximo desenvolvimento
de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo
suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.
Da perspectiva da RREI, consideramos que a Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e a Lei
Brasileira de Inclusão são avanços significativos para o cumprimento do artigo
24 da CDPD, além de serem referências importantes
para outros países da América Latina. Assim, é motivo de preocupação para todos
nós que se pretenda reformular a PNEEPEI, não para ampliar a garantia de
direitos, mas para retroceder a modelos superados e contrários às obrigações
que o Estado Brasileiro assumiu no plano internacional, como os que promovem
classes especiais e sistemas de ensino
segregados. Para os Estados que subscreveram a Convenção das
Nações Unidas, a educação inclusiva não é uma opção, mas constitui uma
obrigação juridicamente vinculativa. Por isso, estes entes têm o dever de avançar
progressivamente para a plena efetividade da Convenção, além de direcionar os
seus esforços para a elaboração de políticas educacionais que assegurem a todos
os alunos uma educação de qualidade e sem discriminação, e de transferir os recursos de ambientes
segregados para inclusivos[2]. A
Observação Geral número 4 do Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência
estabelece que “a progressiva efetividade significa que os Estados partes têm a
obrigação concreta e permanente de atuar o mais rapidamente e eficazmente
possível, a fim de alcançar a plena aplicação do artigo 24”[3].
A este respeito, destacamos que todas as medidas tomadas no plano
educacional devem respeitar o princípio da progressividade – e não o da regressividade
–, que rege matéria de direitos econômicos,
sociais e culturais (artigo 2.1 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais e artigo 26 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos). Por essas e outras razões, as ações governamentais
que tenham por objeto (ou efeito direto ou indireto) retroceder nos direitos e padrões alcançados
em relação à educação das pessoas com deficiência são contrárias ao direito
internacional e suscetíveis de comprometer a responsabilidade dos Estados frente
aos organismos do sistema universal e regional de promoção e proteção dos
direitos humanos.Também nos estamos preocupados que a discussão em torno
dessa mudança ocorra sem garantir a participação
efetiva de organizações legítimas que lutam pela inclusão de pessoas com
deficiência. Esta conduta estatal viola claramente as disposições do artigo 4.3
da CDPD, segundo o qual "na
elaboração e aplicação da legislação para tornar efetiva a presente Convenção e
em outros processos de adoção de decisões sobre questões relacionadas com
pessoas com deficiência, os Estados Partes devem realizar consultas diretas e colaborar
ativamente com pessoas com deficiência, incluindo meninos e meninas com
deficiência, por meio das organizações que as representam”. Fica claro, então, que a ausência de consultas diretas a
pessoas com deficiência invalida qualquer mudança na política pública.
Entendemos que a alegada reforma representa uma
afronta ao CDPD, à constituição do Brasil e à LBI – Lei de Brasileira de
Inclusão, uma vez que visa legitimar a
educação segregada. A Observação Geral número 4 é clara quando define que a
escola especial representa uma segregação[4], que é uma
abordagem ,e que a eficácia progressiva "não é compatível com a manutenção de dois
sistemas de ensino: um sistema de educação geral e um sistema de educação
segregado ou especial”[5].
Em virtude do exposto, solicitamos que:
a)
O Ministério da educação se
abstenha de promover qualquer reforma da Política Nacional de Educação Especial
na perspectiva da Educação Inclusiva-PNEEPEI (2008) que não cumpra com as
obrigações internacionais, constitucionais e legais acima enunciadas. Qualquer
alteração a ser promovida deve ser, inevitavelmente, observar o previsto no
artigo 24 do CDPD com o alcance permitido pela Observação Geral número 4 do Comitê
dos Direitos das Pessoas com Deficiência, pelo artigo 27 da LBI e pelo princípio da não regressividade
que rege os direitos econômicos, sociais e culturais;
b)
Qualquer alocação de
recursos públicos seja realizada visando a ampliação e a melhoria da educação
inclusiva no sistema de educação regular, e em todos os níveis;
c)
Todas as propostas de
alteração do PNEEPEI sejam submetidas a consultas públicas, assegurando que as
pessoas com deficiência, as organizações que lutam pelos seus direitos e outras
entidades representativas (movimentos que defendem a qualidade da educação em
geral, as universidades e os pesquisadores) sejam previamente ouvidos e
participem de maneira efetiva.
Sem mais e à
espera que as considerações sejam levadas em conta por esse Ministério, despedimo-nos.
Atenciosamente,

Dalie Antúnez
Representando a
rede regional de educação inclusiva
[1] A
RREI – Rede Regional pela Educação Inclusiva é constituída pelas seguintes
organizações: Associação Brasileira para a Ação dos Direitos das Pessoas com Autismo
– Abraça (Brasil); Associação Colombiana de Síndrome de Down – ASDOWN
(Colômbia); Autismo Chile (Chile); Centro de Arquivos e Acesso à Informação
Pública – CAinfo (Uruguai); Coalizão
pelo Direito a uma Educação Inclusiva (Peru); Down 21 Chile (Chile); Federação Brasileira das Associações de Síndrome
de Down(FBASD - Brasil); Fundação Saraki (Paraguai); Fundação Síndrome de Down
(Brasil); Fundação Síndrome de Down do Caribe – FunDown Caribe (Colômbia); Grupo Art. 24 pela Educação Inclusiva
(Argentina); Grupo de Trabalho sobre Educação Inclusiva no Uruguai – GT-EI
(Uruguai); Instituto Interamericano
sobre Deficiência e Desenvolvimento Inclusivo- IIDI (Uruguai); Sociedade Peruana de Síndrome de Down (SPSD-Peru);
e Sociedade e Deficiência (SODIS-Peru).
[2] Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência, Observação
Geral número 4 sobre o direito à educação inclusiva, CDPD/C/GC/4, 2016,
parágrafo 70.