sexta-feira, 9 de outubro de 2020

MANIFESTO ABRAÇA - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA PARA AÇÃO POR DIREITOS DAS PESSOAS AUTISTAS (EM 3/10/2020)

 

Abraça - Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas

Fernanda Santana, Presidenta da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça), fala do enorme retrocesso que representa o decreto 10.502/2020, que institui a “Política Nacional da Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida” e sobre o manifesto de repúdio lançado pela organização.

https://abraca.net.br/manifesto-de-repudio-ao-decreto-no.../

#escolaespecialnãoéinclusiva

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MANIFESTO DE REPÚDIO AO DECRETO Nº 10.502/2020

Posted on 2 outubro, 2020

Nós, da Associação Brasileira para Ação pelos Direitos das Pessoas Autistas (ABRAÇA) contestamos e repudiamos fortemente o Decreto nº 10.502/2020, que institui a “Política Nacional da Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”. 

Entendemos que o texto do decreto promulgado em 30 de setembro de 2020:

descaracteriza o sentido de inclusão estabelecido pelo art. 24 da Convenção Internacional de Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), tratado que tem status constitucional no ordenamento jurídico brasileiro (Decreto nº 6.949/2019);

representa um grande retrocesso em relação à Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008;

viola a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), em seu art. 27, quanto ao direito à educação em um sistema educacional inclusivo em todos os níveis; 

legitima a discriminação em razão da deficiência, por meio da permissão de práticas excludentes que impedem e impossibilitam o reconhecimento, o desfrute e o exercício do direito humano à educação por parte de alunos com deficiência, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, (Cf. art. 4º, 5º da LBI).

Nossas principais discordâncias formais e materiais são as seguintes:

O texto distorce conceitos e abre a possibilidade de se entender Inclusão como um paradigma educacional que pode ter resultados não benéficos (art. 2º, VI; art. 9º, III). Entendemos que a perspectiva educacional inclusiva é fundamental para o florescimento de uma sociedade democrática de direitos, pautada pela busca da igualdade e pelo acolhimento das diferenças. Nesse sentido, não existe inclusão não benéfica.  Se não é benéfico, não é inclusão. Todos os alunos, com e sem deficiência, se beneficiam diretamente da educação inclusiva.

O decreto abre possibilidade de financiamento de classes especializadas em escolas ditas inclusivas (mas que não são) e de escolas especializadas (art. 2º, VI e VII). Em escolas inclusivas, todas as demandas educacionais são atendidas no contexto comum, do qual participam todos os estudantes, com e sem deficiência, compartilhando o mesmo ambiente e as mesmas experiências. É contraditório, nesse sentido, reconhecer que instituições inclusivas possam ter classes especializadas e que sistemas de ensino inclusivos sejam compostos por entidades especializadas. Segundo o Comentário Geral nº 4 do Comitê da ONU pelos Direitos das Pessoas com Deficiência, a educação oferecida em ambientes separados daqueles utilizados por estudantes sem deficiência é chamada de segregação.

Há, no decreto, a sugestão falaciosa de que a família e a equipe multidisciplinar podem optar por uma “alternativa educacional mais adequada” (art. 3º, VI; art. 6º, IV, art. 9º, III) ao mesmo tempo que assume que definirá critérios para determinar quais são os “educandos que não se beneficiam das escolas regulares inclusivas” (art. 9º, III), revelando que não haverá, de fato, escolha. 

Ainda assim, mesmo que fosse verdade, a ideia de que a comunidade escolar pode decidir pela inserção do estudante em classes ou instituições especializadas desvirtua o próprio sentido da palavra “inclusão”. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, “pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”(Lei nº 8069/1990, art. 55). Portanto, quando falamos de educação inclusiva, tratamos de um direito humano indisponível e inegociável.

Ao falar de “educandos que não se beneficiam das escolas regulares inclusivas”, a política tira o foco das barreiras (arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais, etc.) e atribui ao educando com deficiência qualidade de estar apto ou não a frequentar um determinado espaço. Isso demonstra claramente o alinhamento desta política ao modelo médico da deficiência, já superado desde a ratificação da CDPD. Não se pode exigir pré-requisitos para acessar o direito à educação. O direito já é nosso, independente de nossas características ou demandas. Quem precisa se adequar é a Escola, garantindo acessibilidade, adaptações razoáveis e apoio.

O texto fala em garantir que o educando esteja em um “ambiente menos restritivo possível” (art. 9, III), deixando claro que a criação de ambientes restritos é uma possibilidade, a ser concretizada diante de uma suposta inadequação do estudante no contexto educacional comum. Além de tirar o foco das barreiras – estas, sim, criadoras da restrição de direitos e de oportunidades – a ideia de criar ambientes especiais ou restritos é contraditória à perspectiva da “Educação para todos”. Segundo essa visão, todos os estudantes devem aprender nos mesmos contextos educacionais, sendo a presença de cada um necessária e indispensável para o aprendizado de todos.

O decreto descaracteriza o Atendimento Educacional Especializado como um serviço com vistas a assegurar a inclusão na escola regular, não limitando seu papel a complementar e suplementar, mas abrindo a possibilidade para que seja substitutivo do ensino regular (art. 4, III). Além do mais, lista, em seu art. 7º, uma série de centros educacionais destinados a atender deficiências específicas de modo segregado, onde, por exemplo, crianças autistas só conviveriam com outras crianças autistas. 

Pessoas com deficiência têm direito à educação e à saúde de qualidade. O artigo 7º cita “outros serviços e recursos para atender os educandos da educação especial”, sem especificação, o que abre uma brecha para que verbas destinadas à educação financiem outros tipos de serviços não educacionais, inclusive terapêuticos. Um direito não se sobrepõe ao outro. Competências e espaços devem ser respeitados. Ter todos os serviços em um mesmo espaço nos remete às instituições totais, onde pessoas com deficiência são segregadas e têm negado o direito à vida em comunidade.

Embora o Decreto fale em aprendizado ao longo da vida, não trata da transversalidade da educação especial desde a Educação Infantil até a Educação Superior, da Educação de Jovens e Adultos ou da Educação Técnica e Profissionalizante. Em vez disso, se limita a colocar a Universidade no papel de prestadora de serviços e de produtora de conhecimento sobre deficiência, o que não necessariamente inclui pessoas com deficiência e, portanto, interrompe o processo de inclusão que vem sendo desenvolvido nas instituições universitárias desde a implementação das cotas e dos núcleos de inclusão e acessibilidade dos estudantes universitários com deficiência. Dessa forma, desrespeita o art. 24 da CDPD, que garante o aprendizado ao longo da vida sem exclusão baseada em deficiência. Segundo o Comentário Geral nº 4 do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o aprendizado ao longo da vida inclui acesso a pré-escola, ensino fundamental, médio e superior, treinamento vocacional e educação continuada, atividades extracurriculares e sociais. Tudo isso mediante a garantia de adaptações razoáveis. 

O Decreto adota a definição de aprendizado ao longo da vida de que, como “a educação não acontece apenas no âmbito escolar”, o “aprendizado pode ocorrer em outros momentos e contextos, formais ou informais, planejados ou casuais, em um processo ininterrupto”. Embora seja verdade, não é papel do Estado. Com tal definição, portanto, o governo se desobriga em vez de regulamentar as provisões dispostas no art. 24 da CDPD que asseguram, por exemplo, acesso ao ensino superior em geral, treinamento profissional de acordo com sua vocação, educação para adultos e formação continuada, sem discriminação e com igualdade de condições.

A consulta às pessoas com deficiência, por meio de suas organizações representativas, é essencial no processo de elaboração de legislações e políticas relacionadas às pessoas com deficiência. A ausência de tal consulta na construção desta Política fere o direito das pessoas com deficiência a participar em decisões que afetam diretamente as suas vidas, contrariando o que foi estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (artigo 4.3), tornando o processo de construção desse decreto ilegítimo e inconstitucional. A consulta a organizações de classes profissionais, especialistas, familiares ou prestadores serviços não contempla a obrigação de consultar as organizações representativas de pessoas com deficiência, que, segundo o Comentário Geral nº 7, do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, são aquelas lideradas, dirigidas e governadas por pessoas com deficiência.

Conclamamos os agentes públicos e políticos, os movimentos sociais, as pessoas com deficiência e seus familiares e toda a sociedade a lutar em defesa da educação inclusiva no Brasil.

Ressaltamos a importância do engajamento de todas as pessoas para resistir ao processo de desmonte da inclusão. Não nos resignaremos diante da perda dos inúmeros avanços civilizatórios que obtivemos em mais de uma década de consolidação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva!

#EscolaEspecialNãoéInclusiva

Brasil, 2 de outubro de 2020.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA PARA AÇÃO PELOS DIREITOS DAS PESSOAS AUTISTAS (ABRAÇA)


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DEPOIMENTO DA MÃE de Pessoa com Deficiência: ADRIANA MONTEIRO, em 09/10/2020 no facebook

Por Adriana Monteiro

Advogada, Especializada em Direito da Família e Direitos da Pessoa com Deficiência

Para acessar o depoimento original, clique AQUI

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Uma pessoa da escola da minha filha me chamou de hipócrita. Ana Luísa estuda em escola especial. Todo mundo sabe. Eu já disse isso várias vezes aqui.

Eu já estive do lado da defesa da escola especializada. Hoje, vendo crianças tão graves ou mais graves que a minha filha se beneficiando da inclusão e tendo possibilidades de uma vida muito mais independente do que a dela, tenho plena certeza que eu estava errada. 

A legislação hoje vigente não vai contra a especializada, mas vai contra a criação de novas escolas especializadas para frequência em regime escolar e não em regime suplementar e complementar. 

Se o Estado tem recursos para a construção de novos centros, que invista na inclusiva. 

O certo é investir em inclusão e fomentar atendimento para todos no mesmo espaço. 

Para isso, é preciso investir em tecnologia assistiva, capacitação da rede, mediação escolar e redução de turmas. 

Os ambientes escolares especializados que já existem precisam continuar existindo porque pessoas como minha filha estão hoje adultas e elas precisam de atendimento. Mas as crianças precisam ir para a inclusão. Elas aprendem com o exemplo do outro. O aprendizado exige troca.

Enquanto, crianças de 10, 12 anos com a síndrome da minha filha começam a ser alfabetizadas com uso de comunicação alternativa e aumentativa dentro da rede inclusiva, minha filha aos 19 continua estancada e com evoluções muito pequenas.

As novas gerações podem ter um futuro melhor com os suportes que precisam e a inclusão social. Os tempos são outros. Avancemos! 

Fora isso, 10 minutos para manifestação da sociedade civil não é participação popular em audiência pública. Existem instâncias que o Governo precisa ouvir quando lança uma política para PCD e o CONADE é uma delas. 

Não acho que o Decreto esteja todo ruim, mas ele tem erros graves formais e materiais. Precisa submeter ao CONADE, inserir a escola inclusiva na estrutura do artigo 9, mudar a perspectiva de "escolha" porque ela não pode existir porque deixa brechas para que as coordenações e as escolas orientem os pais para a especializada e dispor sobre a escola especial para os adultos (tem que segurar o orçamento para esses que não tiveram chances de inclusão e para os que irão precisar no futuro também). Da forma que ele está é INCONSTITUCIONAL.

Posso mudar de opinião de novo (não em relação ao Decreto: ele é inconstitucional e ponto) sou sempre aberta a isso porque crescemos e aprendemos com o tempo. Então, estou aberta ao debate. 

Acho que não vamos avançar enquanto não nos ouvirmos. Temos que chegar a um meio termo, mas ele não pode excluir as pessoas.

ABRASCO - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA NOTA DE REPÚDIO AO DECRETO PNEE (6/10/2020)

Nota de Repúdio ao Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial


A comunidade científica vinculada à Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), ao Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e Inclusão da Pessoa com Deficiência, ao Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional (ObEE) e ao AcolheDown, vem por meio desta nota se posicionar quanto ao teor do Decreto Nº. 10.502, de 30 de setembro de 2020, que institui a nova política nacional de educação especial.

Pontuamos, inicialmente, alguns preceitos da Constituição Brasileira (1988): o art. 1º descreve entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, a cidadania e a dignidade da pessoa humana; o art. 2º aponta como um dos seus objetivos fundamentais (item IV), “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e quaisquer outras formas de discriminação”, o que abarca as diferentes deficiências, e o art. 6º indica que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados […] (CF, 1988). O Decreto n. 10.502, publicado em 30 de setembro de 2020, fere os artigos constitucionais mencionados, visto que possibilita a segregação de pessoas com deficiência, sob a velha justificativa da inclusão de “pessoas especiais” em “ambientes especializados” e da autonomia das mães e pais de pessoas com deficiência em decidirem sobre aquilo que pensam ser o melhor para seus filhos, inclusive sobre a educação.

Ao promulgar o Decreto Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008 e o Decreto nº 6.949, de 25 de Agosto de 2009, tornando o Brasil signatário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que em seu art. 24 defende a inclusão incondicional, o Estado brasileiro assumiu o compromisso de assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida. A Lei Brasileira de Inclusão (LBI), criada sob sua referência, determina que incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida; e o aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena (BRASIL, 2015, Art. 28). A presente política, instituída pelo Decreto nº 10502/2020, viola um direito humano da pessoa com deficiência assegurado constitucionalmente, quando viabiliza e legitima formatos educacionais na contramão das práticas inclusivas, corroborando para a segregação de tais sujeitos. Ao localizar no pressuposto da inclusão ou na “insuficiência da escola” a justificativa para não garantir o direito à convivência entre as diferenças, o presente decreto estigmatiza, exclui e segrega as pessoas com deficiência.

A defesa da dignidade e da equidade implica o reconhecimento da deficiência como parte da experiência humana e da demonstração de que o acesso às políticas e serviços em igualdade de condições com as demais pessoas são valores a serem afirmados. A Educação Inclusiva tem como pressuposto a desconstrução das práticas de segregação as quais pessoas com deficiência foram historicamente submetidas. Ela requer investimentos de diversas ordens, incluindo a formação continuada dos profissionais de educação, a contratação permanente de profissionais de apoio e a garantia de recursos pedagógicos em quantidade e variedade, capazes de atender às diferentes necessidades educacionais de cada aluno. Ademais, é indispensável a garantia de uma rede de atenção interdisciplinar e intersetorial que promova a articulação necessária ao atendimento integral às pessoas com deficiência, o que inclui o acesso às diferentes políticas públicas e direitos sociais.

Na Educação Inclusiva não se deseja ou espera a separação entre sujeitos ou grupos, ao contrário, compreende-se que todas as pessoas têm a possibilidade de acessar e participar de um modelo de educação em comum, verdadeiramente emancipatório e igualitário, sem que seja negada a convivência cotidiana entre as pessoas com e sem deficiência na mesma escola e sala de aula, garantindo acesso ao atendimento educacional especializado e, consequentemente, aos recursos e tecnologias capazes de potencializar o processo de ensino e aprendizagem, quando necessário e pertinente, atendendo às singularidades de cada aluno. As perspectivas que a antecedem eram pautadas em lógicas de correção e de normalização de seus corpos e funções, contexto em que possibilidades de reconhecimento das diferenças como valor eram negadas. O Decreto nº 10502/2020 é considerado um retrocesso por retomar tais perspectivas há décadas superadas nos estudos sobre educação e na legislação internacional que a ampara, incluindo os tratados internacionais dos quais o país é signatário.

Em muitas oportunidades, governos deixam de implementar políticas de Estado que se fazem sentir na vida das pessoas, mas o presente decreto ao invés de contribuir no aperfeiçoamento de um marco legal, por um lado desconstrói os avanços obtidos, e, por outro, induz a sociedade a caminhar em direção a negação dos direitos postulando o segregacionismo. A escola, enquanto espaço plural e democrático, requer também investimentos na esfera da vida social e na superação de interesses puramente mercadológicos, que por um lado tendem a apoiar os desmontes no investimento público em educação e, por outro, atender a um nicho de interesses na superespecialização que é pautado em lógicas capacitistas, ou seja, que consideram a deficiência como déficit e incapacidade. Neste sentido, o referido Decreto compõe o cenário de esfacelamento do legado dos direitos atualmente vivenciado no Brasil que se expressa no franco desmonte das políticas sociais mediante negação dos investimentos necessários à sua implementação, estabelecendo cisões profundas com as conquistas democráticas da população brasileira.

O Decreto informa que tem como objetivos garantir os direitos constitucionais de educação e de atendimento educacional especializado”, promover ensino de excelência aos educandos da educação especial, em todas as etapas, níveis e modalidades de educação, em um sistema educacional equitativo, inclusivo e com aprendizado ao longo da vida, sem a prática de qualquer forma de discriminação ou preconceito, assegurar o atendimento educacional especializado como diretriz constitucional, para além da institucionalização de tempos e espaços reservados para atividade complementar ou suplementar (Art. 6º). Entretanto, tais objetivos e seus desdobramentos conceituais apresentados como “inovações” configuram-se em nítidos retrocessos frente às conquistas históricas das Pessoas com Deficiência que precisam ser alvo de constante reflexão e revisão, além de debate amplo com a sociedade.

A Conferência Mundial de Educação Especial, em 1994, deu origem à Declaração de Salamanca, que pode ser evocada para reassumir compromissos com uma educação inclusiva e não discriminatória. Ela assume, dentre outros pressupostos valorosos, que escolas regulares, que possuam tal orientação inclusiva, constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias, criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e alcançando educação para todos; além disso, tais escolas provêm uma educação efetiva à maioria das crianças e aprimoram a eficiência e, em última instância, o custo da eficácia de todo o sistema educacional (Declaração de Salamanca, 1994, Art. 2).

A desresponsabilização do Estado e da sociedade na garantia da educação inclusiva como modalidade de ensino para pessoas com deficiência constitui prática discriminatória. Além de ter como princípio a ideia de que tais sujeitos são incapazes de participar do espaço escolar, evidencia-se uma conduta de não reconhecimento e de não responsabilização pela supressão das barreiras que produzem as limitações de participação plena, efetiva e em igualdade de condições às demais pessoas. Conforme a Declaração de Salamanca, quanto ao dever do Estado, faz-se necessário atribuir a mais alta prioridade política e financeira ao aprimoramento de seus sistemas educacionais no sentido de se tornarem aptos a incluírem todas as crianças, independentemente de suas diferenças ou dificuldades individuais (Declaração de Salamanca, 1994, Art. 3).

O Decreto nº 10502/2020 ignora vozes dissonantes de famílias e movimentos civis que deveriam, através de ações participativas, discutir a importância da Inclusão como conceito orientador e prática possível. Vale ressaltar que a política por este dispositivo instituída não passou por discussão ampla com a sociedade e, especificamente, com representantes dos movimentos de luta pelos direitos da pessoa com deficiência. A participação social foi negada e o texto aprovado não condiz com a atualização esperada para a política anterior, posto que não considera os marcos normativos aprovados e em vigor na última década – todos em defesa da educação inclusiva como modalidade de ensino.

Pesquisas como a de Glat e Pletsch (2011) apontam que a Política Nacional de Educação inclusiva tem sido desrespeitada. Em pesquisa recente, Calheiros e colaboradores (2019) reafirmam em uma das conclusões que quando se amplia a rede de interações, maiores são as possibilidades de trocas e de aprendizagem, de valorização das práticas. Diante dos desafios relacionados às crianças com deficiência, faz-se necessário gerar mecanismos de confiança e troca entre saberes da saúde, da educação e das famílias. Há que se questionar como acionar o que já existe em políticas públicas para que possa incorporar programas como esse, em que as famílias e suas crianças são de fato protagonistas dessas relações. Somente dessa maneira é possível falar sobre inclusão e integralidade (pg. 12).

À luz dessas considerações, este coletivo de pesquisadores reafirma o seu repúdio ao Decreto 10.502, ressaltando que o caminho não é alterar a política de inclusão vigente no sentido de retrocedê-la, mas compreender tecnicamente como transformar os problemas em oportunidades, aprendizados e afirmação da inclusão. Esta nota pretende endossar as vozes de tantas outras entidades públicas, da sociedade civil e do movimento das pessoas com deficiência que imediatamente se levantaram contrárias a esta normativa que fere princípios constitucionais. Repudiamos qualquer retrocesso que tente impedir o avanço na direção de uma sociedade mais justa e plural. A saída não é retroceder, mas avançar, com financiamento, pesquisas e conhecimento e, principalmente, com a implementação de políticas públicas de inclusão social. Neste sentido, reiteramos também a urgente revogação da Emenda Constitucional Nº 95, de 15 de Dezembro de 2016, dispositivo que inviabiliza a implementação de práticas inclusivas, transversais e integrais mediante o congelamento de gastos sociais pelo período de vinte anos.

Referências

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 01 out. 2020.

BRASIL. Lei Nº 13.146, de 6 de Julho de 2015. Lei Brasileira de Inclusão (LBI). Brasília, Diário Oficial [da República Federativa do Brasil, 2015.

GLAT, Rosana; PLETSCH, Marcia Denise. Inclusão escolar de alunos com necessidades. educacionais especiais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011, 162p.

SÁ, Miriam Ribeiro Calheiros de ; VIEIRA, Ana Carolina Dias ; CASTRO, Barbara S Madeira ; AGOSTINI, Olivia ; SMYTHE, Tracey ; KUPER, Hannah ; MOREIRA, Maria Elizabeth Lopes ; MOREIRA, Martha Cristina Nunes . De toda maneira tem que andar junto: ações intersetoriais entre saúde e educação para crianças vivendo com a síndrome congênita do vírus Zika. Cad. Saúde Pública [online]. 2019, vol.35, n.12 [citado 2020-10-02], e00233718.

Apoiam esta nota:

NIPPIS – Núcleo de Informação, Políticas Públicas e Inclusão Social (Fiocruz-Unifase)

Inclusive – Inclusão e Cidadania

Movimento Down

Nit Down

Chat21 – Central de Humanização e Acolhimento

A trissomia do Amor 21

M.A.E. Mães e amigos especiais

Inclusivamente

Associação Angelman Brasil

 

 


Visão Profa. Erenice Carvalho sobre o Decreto. Publicada no Facebook em 4a feira (10h.40m)

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Posição de Erenice Carvalho


O Decreto nº 10.502/202 que institui a Política Nacional de Educação Especial tem problemas que ainda precisam ser dirimidos. A produção de subsídios que basearam o texto inicial (2018) foi realizada com base em relatórios de consultores selecionados por edital da Unesco em seleção pública aberta em âmbito nacional com resultados publicizados, inclusive currículo e entrevista. 

O processo de elaboração do texto fundamentou-se, portanto, em ampla avaliação nacional sobre os resultados da implementação da política de 2008, em vigor naquele momento. Os relatórios desse estudo nacional estão no MEC e na Unesco para consulta. Os consultores, grupo do qual participei, percorreram os estados e o DF, levantando numerosos dados mediante entrevistas, visitas (secretaria de educação, escolas e salas de recursos multifuncionais), conselhos estaduais de educação e ministério público estadual e do DF. 

Mediante o uso de instrumento online, recebemos informações de todas as secretarias de educação dos estados, municípios e do DF. Enviamos questionário também ao ministério público dos estados. Levamos o ano de 2017 e 2018 em coleta e sistematização das  informações buscadas. 

Ao final de 2018, o texto da política estava pronto para consulta pública, divulgada nacionalmente para a população em geral, com respostas individuais enviadas ao MEC on line, tão logo finalizado o preenchimento. A Universidade Federal de Alagoas foi contratada para analisar os dados e enviou ao MEC um relatório da consulta ainda em 2018, com mais de 300 páginas (disponível no site do órgão), a tempo de finalizar a proposta de política antes da mudança de governo. 

Reações de partidários da política de 2008 questionaram a inserção das escolas e classes especiais e das escolas e classes bilíngues no texto proposto. A despeito de sua existência na prática,  legitimada na LDB, essas ofertas deveriam ser omitidas na política, alegando sua perspectiva inclusiva. 

Durante todo o ano de 2019, o Conselho Nacional de Educação trabalhou com o MEC para atualizar o texto. Foram criados diversos grupos de trabalho para apoiar as discussões e a elaboração. Fiz parte de alguns desses grupos (def intelectual, múltipla, def visual e atendimento educacional especializado). Trabalhamos muito. Reuniões foram realizadas com pessoas e órgãos convidados para contribuir com subsídios, visando à elaboração de pareceres e resoluções para implementação da política, enquanto se aguardava seu lançamento. Antes disso, o material seria colocado também em consulta pública.

O Decreto que acaba de ser lançado foi formulado com base em dados produzidos, mas seu texto final não foi de nosso conhecimento. O texto contém conceitos e propostas, a nosso ver, carentes de revisão e alterações  por parte dos interessados, dos envolvidos na elaboração das fontes e beneficiários da política. 

AQUI SOU OBRIGADA A ESCLARECER QUE ESTE TEXTO DA PNEE NÃO "FOI FORMULADO COM BASE EM DADOS PRODUZIDOS NAS PESQUISAS". EU FIZ PARTE DO GRUPO DE CONSULTORES. MEU TRABALHO FOI SOBRE A BNCC E A EDUCAÇÃO ESPECIAL. POR ISSO PARTICIPEI DE TODAS AS REUNIÕES DOS GRUPOS DE CONSULTORES. E POSSO AFIRMAR QUE OS ESTUDOS REALIZADOS NÃO FORAM CONSIDERADOS NA CONSTRUÇÃO DO TEXTO DO DECRETO PUBLICADO.

Entendo que o momento é de reagirmos ao texto. Atitude democraticamente saudável... No entanto, defendemos que o Decreto não seja revogado, exumando a política de 2008. Porque conquistas importantes da sociedade estão contempladas nesse texto. No entanto, deve passar pela leitura crítica de todos e ser modificado. Este depoimento para vocês, amigos, e para seus outros amigos que nos leem, foi escrito porque parece meu dever, uma vez que participei do processo que antecedeu o texto do decreto, há quase 4 anos. Como alguns de vocês, atuei na educação especial e conhecemos os estudantes e suas famílias - DE FATO - e os colocamos no centro de nossas preocupações, reflexões e ações. 

Somos acadêmicos também, além de experientes na área. Sinto-me afrontada ao ouvir ofensas equivocadas sobre escolas especiais, classes especiais, professores especializados. E de ver a comunidade escolar vista como antiguada, segregadora e conivente com o isolamento de pessoas em situação de deficiência. Trata-se de desqualificação, desrespeito e ignorância sobre o que se faz nos espaços especializados. É verdade que ainda existe muito a ser melhorado nesses serviços, mas não podem ser execrados e difamados do modo como está sendo feito. 

Defendo a permanência do decreto, chamado pelos difamadores de “Decreto do Bolsonaro”. Nada mais impróprio. Também chamam a política de 2008 como “Política de Lula e Dilma”. Também impróprio. Porque eles não participaram da  elaboração dos textos e nem constituem o público-alvo beneficiado pelos documentos a quem se destinam. A política é pública e pertence à sociedade. Não vamos entrar nessa politicagem... Ela desmerece nossa dedicação e esforço, além de vivência da cidadania.

O Decreto deve ser analisado, criticado e questionado, com vista aos ajustes necessários, conforme seus princípios e finalidades, por parte das famílias, estudiosos, pesquisadores, profissionais, legisladores, juristas, enfim, pela sociedade como um todo. 

Mas exigimos respeito à categoria docente da educação especial, aos gestores e colaboradores que atuam nas escolas e classes especiais, aos estudantes e suas famílias, cujo protagonismo não pode ser questionado e desrespeitado. Ao contrário, deve ser acatado e fortalecido, para o bem-comum e para construção de uma sociedade igualitária, equitativa, responsável, tolerante e respeitosa.