Abraça
- Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas
Fernanda Santana,
Presidenta da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas
(Abraça), fala do enorme retrocesso que representa o decreto 10.502/2020, que
institui a “Política Nacional da Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com
Aprendizado ao Longo da Vida” e sobre o manifesto de repúdio lançado pela
organização.
https://abraca.net.br/manifesto-de-repudio-ao-decreto-no.../
ACESSE O VIDEO AQUI
MANIFESTO DE REPÚDIO AO
DECRETO Nº 10.502/2020
Posted on 2 outubro, 2020
Nós, da Associação
Brasileira para Ação pelos Direitos das Pessoas Autistas (ABRAÇA) contestamos
e repudiamos fortemente o Decreto nº 10.502/2020, que institui a “Política
Nacional da Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo
da Vida”.
Entendemos que o texto
do decreto promulgado em 30 de setembro de 2020:
descaracteriza o
sentido de inclusão estabelecido pelo art. 24 da Convenção Internacional de
Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), tratado que tem status constitucional
no ordenamento jurídico brasileiro (Decreto nº 6.949/2019);
representa um grande
retrocesso em relação à Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva
da Educação Inclusiva de 2008;
viola a Lei Brasileira
de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), em seu art. 27, quanto ao direito à educação
em um sistema educacional inclusivo em todos os níveis;
legitima a
discriminação em razão da deficiência, por meio da permissão de práticas
excludentes que impedem e impossibilitam o reconhecimento, o desfrute e o
exercício do direito humano à educação por parte de alunos com deficiência, em
igualdade de oportunidades com as demais pessoas, (Cf. art. 4º, 5º da LBI).
Nossas principais
discordâncias formais e materiais são as seguintes:
O texto distorce
conceitos e abre a possibilidade de se entender Inclusão como um paradigma educacional
que pode ter resultados não benéficos (art. 2º, VI; art. 9º, III). Entendemos
que a perspectiva educacional inclusiva é fundamental para o florescimento de
uma sociedade democrática de direitos, pautada pela busca da igualdade e pelo
acolhimento das diferenças. Nesse sentido, não existe inclusão não
benéfica. Se não é benéfico, não é inclusão. Todos os alunos, com e
sem deficiência, se beneficiam diretamente da educação inclusiva.
O decreto abre
possibilidade de financiamento de classes especializadas em escolas ditas
inclusivas (mas que não são) e de escolas especializadas (art. 2º, VI e VII).
Em escolas inclusivas, todas as demandas educacionais são atendidas no contexto
comum, do qual participam todos os estudantes, com e sem deficiência,
compartilhando o mesmo ambiente e as mesmas experiências. É contraditório,
nesse sentido, reconhecer que instituições inclusivas possam ter classes
especializadas e que sistemas de ensino inclusivos sejam compostos por
entidades especializadas. Segundo o Comentário Geral nº 4 do Comitê da ONU
pelos Direitos das Pessoas com Deficiência, a educação oferecida em
ambientes separados daqueles utilizados por estudantes sem deficiência é
chamada de segregação.
Há, no decreto, a
sugestão falaciosa de que a família e a equipe multidisciplinar podem optar por
uma “alternativa educacional mais adequada” (art. 3º, VI; art. 6º, IV, art. 9º,
III) ao mesmo tempo que assume que definirá critérios para determinar quais são
os “educandos que não se beneficiam das escolas regulares inclusivas” (art. 9º,
III), revelando que não haverá, de fato, escolha.
Ainda assim, mesmo que
fosse verdade, a ideia de que a comunidade escolar pode decidir pela inserção
do estudante em classes ou instituições especializadas desvirtua o próprio
sentido da palavra “inclusão”. De acordo com o Estatuto da Criança e do
Adolescente, “pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou
pupilos na rede regular de ensino”(Lei nº 8069/1990, art. 55). Portanto,
quando falamos de educação inclusiva, tratamos de um direito humano
indisponível e inegociável.
Ao falar de “educandos
que não se beneficiam das escolas regulares inclusivas”, a política tira o foco
das barreiras (arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais, etc.) e atribui ao
educando com deficiência qualidade de estar apto ou não a frequentar um
determinado espaço. Isso demonstra claramente o alinhamento desta política ao
modelo médico da deficiência, já superado desde a ratificação da CDPD. Não
se pode exigir pré-requisitos para acessar o direito à educação. O direito já é
nosso, independente de nossas características ou demandas. Quem precisa se
adequar é a Escola, garantindo acessibilidade, adaptações razoáveis e apoio.
O texto fala em
garantir que o educando esteja em um “ambiente menos restritivo possível” (art.
9, III), deixando claro que a criação de ambientes restritos é uma
possibilidade, a ser concretizada diante de uma suposta inadequação do
estudante no contexto educacional comum. Além de tirar o foco das barreiras –
estas, sim, criadoras da restrição de direitos e de oportunidades – a ideia de
criar ambientes especiais ou restritos é contraditória à perspectiva da
“Educação para todos”. Segundo essa visão, todos os estudantes devem aprender
nos mesmos contextos educacionais, sendo a presença de cada um necessária e
indispensável para o aprendizado de todos.
O decreto
descaracteriza o Atendimento Educacional Especializado como um serviço com
vistas a assegurar a inclusão na escola regular, não limitando seu papel a
complementar e suplementar, mas abrindo a possibilidade para que seja
substitutivo do ensino regular (art. 4, III). Além do mais, lista, em seu art.
7º, uma série de centros educacionais destinados a atender deficiências
específicas de modo segregado, onde, por exemplo, crianças autistas só
conviveriam com outras crianças autistas.
Pessoas com deficiência
têm direito à educação e à saúde de qualidade. O artigo 7º cita “outros
serviços e recursos para atender os educandos da educação especial”, sem
especificação, o que abre uma brecha para que verbas destinadas à educação
financiem outros tipos de serviços não educacionais, inclusive terapêuticos. Um
direito não se sobrepõe ao outro. Competências e espaços devem ser
respeitados. Ter todos os serviços em um mesmo espaço nos remete às
instituições totais, onde pessoas com deficiência são segregadas e têm negado o
direito à vida em comunidade.
Embora o Decreto fale
em aprendizado ao longo da vida, não trata da transversalidade da educação
especial desde a Educação Infantil até a Educação Superior, da Educação de
Jovens e Adultos ou da Educação Técnica e Profissionalizante. Em vez disso, se
limita a colocar a Universidade no papel de prestadora de serviços e de
produtora de conhecimento sobre deficiência, o que não necessariamente inclui
pessoas com deficiência e, portanto, interrompe o processo de inclusão que vem
sendo desenvolvido nas instituições universitárias desde a implementação das
cotas e dos núcleos de inclusão e acessibilidade dos estudantes universitários
com deficiência. Dessa forma, desrespeita o art. 24 da CDPD, que garante o aprendizado
ao longo da vida sem exclusão baseada em deficiência. Segundo o Comentário
Geral nº 4 do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o
aprendizado ao longo da vida inclui acesso a pré-escola, ensino fundamental,
médio e superior, treinamento vocacional e educação continuada, atividades
extracurriculares e sociais. Tudo isso mediante a garantia de adaptações
razoáveis.
O Decreto adota a
definição de aprendizado ao longo da vida de que, como “a educação não acontece
apenas no âmbito escolar”, o “aprendizado pode ocorrer em outros momentos e
contextos, formais ou informais, planejados ou casuais, em um processo
ininterrupto”. Embora seja verdade, não é papel do Estado. Com tal definição,
portanto, o governo se desobriga em vez de regulamentar as provisões dispostas
no art. 24 da CDPD que asseguram, por exemplo, acesso ao ensino superior em
geral, treinamento profissional de acordo com sua vocação, educação para
adultos e formação continuada, sem discriminação e com igualdade de condições.
A consulta às pessoas
com deficiência, por meio de suas organizações representativas, é essencial no
processo de elaboração de legislações e políticas relacionadas às pessoas com
deficiência. A ausência de tal consulta na construção desta Política fere o
direito das pessoas com deficiência a participar em decisões que afetam
diretamente as suas vidas, contrariando o que foi estabelecido pela Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (artigo 4.3), tornando o
processo de construção desse decreto ilegítimo e inconstitucional. A
consulta a organizações de classes profissionais, especialistas, familiares ou
prestadores serviços não contempla a obrigação de consultar as organizações
representativas de pessoas com deficiência, que, segundo o Comentário Geral nº
7, do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, são aquelas
lideradas, dirigidas e governadas por pessoas com deficiência.
Conclamamos os agentes
públicos e políticos, os movimentos sociais, as pessoas com deficiência e seus
familiares e toda a sociedade a lutar em defesa da educação inclusiva no
Brasil.
Ressaltamos a
importância do engajamento de todas as pessoas para resistir ao processo de
desmonte da inclusão. Não nos resignaremos diante da perda dos inúmeros avanços
civilizatórios que obtivemos em mais de uma década de consolidação da Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Política Nacional de
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva!
#EscolaEspecialNãoéInclusiva
Brasil, 2 de outubro de
2020.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
PARA AÇÃO PELOS DIREITOS DAS PESSOAS AUTISTAS (ABRAÇA)
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