sábado, 3 de outubro de 2020

Crianças passarão a estudar em escolas e salas especiais. Especialistas e professores debatem que o decreto representa um retrocesso para a inclusão

A inclusão de alunos portadores de deficiência é um desafio que escolas, pais e as próprias crianças enfrentam diariamente. É necessário ter um espaço adequado, profissionais capacitados, além do pensamento de que esses estudantes têm direito à educação como qualquer outro. Após anos de luta para garantia da inclusão, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto, publicado nesta quinta-feira (1º/10), tornando pública a Política Nacional de Educação Especial (PNEE), que incentiva a segregação de estudantes com deficiência. Especialistas que convivem com a realidade refletem que a nova medida é um passo atrás nas conquistas que pautam a inclusão.

O objetivo da PNEE é fornecer mais flexibilidade aos sistemas de ensino, na oferta de alternativas como: classes e escolas comuns inclusivas, classes e escolas especiais, classes e escolas bilíngues de surdos, segundo as demandas específicas dos estudantes. Ou seja, fica a critério dos pais a escolha de qual instituição matricular os filhos. A política também pretende aumentar o número de educandos que, por não se beneficiarem das escolas comuns, evadiram em anos anteriores.

Professor da UnB Gerson Mól trabalha há 15 anos com temáticas da educação inclusiva(foto: Arquivo Pessoal)

Para o professor do departamento de química da Universidade de Brasília (UnB) Gerson Mól, 56 anos, o decreto fere a Constituição Federal no que se refere à garantia da inclusão. “Ele tira a obrigação da escola ser inclusiva, colocando a família para escolher onde quer que o filho estude e isso não é inclusão”, alerta o professor que trabalha há 15 anos com pesquisas de pós-graduação sobre educação inclusiva. Apesar de ser uma escolha familiar, não é uma decisão da instituição de ensino, pois é proibido negar matrícula para aluno PcD.

Luiza Corrêa é coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes e trabalha diretamente com ações para políticas públicas de inclusão(foto: Instituto Rodrigo Mendes/Divulgação)

A especialista Luiza Corrêa, 34, do Instituto Rodrigo Mendes também observa a inconstitucionalidade do decreto, além do fato de que a medida representa um atraso de 30 anos na luta da educação inclusiva. Ela acredita que a interação entre crianças com deficiência com as demais auxilia no processo de aprendizagem. “Já está comprovada em diversas pesquisas que a qualidade da educação no ambiente da inclusão é melhor”, ressalta a coordenadora de advocacy do instituto.

Corrêa é responsável por produzir dados, informações e conhecimento que apoiem o avanço da educação inclusiva no país e garantir que essas informações sirvam para uma melhoria nas políticas públicas relacionadas à educação inclusiva. “Temos 90% de alunos com deficiência incluídos na escola regular, e o decreto vem na contra mão”, acrescenta a especialista. Para Luiza, as condições de ensino educacionais são melhores no contexto de interação entre colegas: "Uma das missões da escola é preparar os estudantes para viver em sociedade".


Conviver com a diferença

A importância da convivência entre crianças portadoras e as outras que não têm nenhuma deficiência se dá na possibilidade de aprender com as diferenças e se preparar para a vida em sociedade. O professor Gerson Mól diz que as pessoas só são o que são pelo convívio social. “A gente vai se formando nessa convivência diária e a escola tem um papel fundamental para isso”, reflete o doutor em educação.

O professor da UFES Douglas Ferrari é deficiente visual e fica decepcionado em ver uma luta que ele travou quando estava na educação básica ter um retrocesso(foto: Arquivo Pessoal)

Para o professor do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo Douglas Ferrari, integrar é importante, mas além disso é preciso mediar a convivência entre professor, colegas e escola. “As mediações sociais são muito importantes. Na minha vida é o que me trouxe até aqui. Ter referências na família, ajuda de colegas e na universidade”, conta o doutor em educação que é deficiente visual.

Além disso, ele assegura a necessidade da mediação para gerar consequências positivas para a sociedade. “Esse contato com o outro ‘diferente’ é importante para ele e para aquela pessoa sem deficiência. Futuramente, nós teremos melhores médicos, melhores biológicos, melhores cientistas e melhores professores, porque tiveram contato com pessoa com deficiência”, reforça o professor da UFES.

Para Gerson Mól, o decreto representa um passo atrás na luta dos deficientes, porque não se afasta as crianças umas das outras, mas sim cria-se condições para inclusão. “Ele (o aluno PcD) pode até estar em um espaço que não favoreça, mas não se pode retirá-lo. A gente precisa ir lá e reajustar esse espaço para a efetiva inclusão desse aluno”, conclui.


O que poderia ser feito

As principais ações que os especialistas comentam para melhorar a questão da educação inclusiva é a capacitação de professores e a implementação de infraestrutura mais acessível nas escolas. Outros pontos são a elaboração de diretrizes pedagógicas para direcionar os professores, que precisam de orientação.

A proposta da PNEE é investir em instituições públicas e entidades como Apaes que quiserem adotar a política. Contudo, para os especialistas, o recurso precisa ir para as escolas regulares, pois muitas não têm estrutura para proporcionar a inclusão.“O que o governo precisava fazer é que ele investisse nos processos e não que desse um passo atrás”, reitera o professor da UnB. “Todos têm o direito de viver de forma plural.”

O professor da UFES e deficiente visual Douglas Ferrari informa que entidades desfavoráveis ao decreto se mobilizam para combater e revogar a medida. A Associação Nacional de Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (Ampid) publicou nota de repúdio, com os argumentos de que a PNEE fere a Constituição e os direitos dos deficientes, como também representa um recuo às conquistas na educação inclusiva.

Clique para ler o original: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/2020/10/4879645-nova-politica-de-educacao-especial-propoe-separacao-de-alunos.html

Carta à Sociedade Brasileira | Decreto Nº 10.502/2020 que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida

Consideramos que tal decreto representa um retrocesso aos direitos adquiridos como disposto na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU e na Constituição Federal de 1988

Decreto Nº 10.502/2020 que Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida

Brasil, 2 de outubro de 2020.


A Campanha Nacional pelo Direito à Educação – maior, mais ampla e mais plural rede em defesa do direito à educação no Brasil – vem alertar a sociedade brasileira acerca do Decreto Nº 10.502 de 30 de setembro de 2020 que Institui a “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”.

Consideramos que tal decreto representa um retrocesso aos direitos adquiridos como disposto na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU e na Constituição Federal de 1988. 

Em relação às pessoas com deficiência, o consenso atual está escrito na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, apresentada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em dezembro de 2006, e já assinada por mais de 158 países. No Brasil, como em outros 147 países, esse documento foi ratificado. Aqui, ele tem status de emenda constitucional, conforme o procedimento do § 3o do art. 5º da nossa Constituição Federal de 1988.

Isso significa que todas as outras leis nacionais devem seguir o que está na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. Essa Convenção traz a ideia de que a a não participação de uma pessoa com deficiência é determinada pelo ambiente. Desse modo, define que “[...] pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” (ONU, Art. 1, 2006).

Nesse momento é importante qualificar o que vem a ser um sistema educacional inclusivo como aquele que não deixa ninguém de fora. Para referendar o que está estabelecido na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2016, o Comitê da Organização das Nações Unidas responsável pelo monitoramento de sua implementação expediu o Comentário Geral nº 4 sobre o artigo 24. No final das discussões, a demanda sobre a continuidade dessas escolas segregadas foi rejeitada tanto em termos de princípio como em termos pragmáticos Na prática, portanto, o investimento em escolas especiais milita contra o princípio da inclusão. 

O Brasil, mais uma vez, desonra, descumpre e ignora seus compromissos internacionais, visto que o país é signatário de documentos que pugnam pela inclusão, incondicionalmente.

Faz o mesmo com seus compromissos constitucionais.

A Constituição Federal de 1988, define educação em seu artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

No inciso I do art. 206 apresenta como um dos princípios do ensino a “igualdade de condições e permanência na escola”.

Por fim, em seu art. 208, afirma ser dever do Estado o “atendimento educacional aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”.

O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4, que integra a Agenda 2030, da ONU, prevê que seja assegurada a educação inclusiva e equitativa e de qualidade e sejam promovidas oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos. Assim, garante a inclusão das pessoas com deficiência em todas as metas do ODS 4. Os adjetivos “equitativo” e “inclusivo” são utilizados de maneira diferente do proposto pela ONU. A equidade é o movimento de diferenciar estratégias para gerar inclusão e participação nos espaços comuns de convívio, o oposto da proposta que se apresenta no interior do Decreto.

Diferenciar para excluir é discriminação.

Diante do exposto, defendemos:

  1. que o Estado brasileiro qualifique a oferta para que ninguém seja excluído, de acordo com as convenções e tratados internacionais dos quais é signatário e também em consonância com os preceitos constitucionais;
  2. a aprovação, na Lei de regulamentação do Fundo Nacional de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), prazo para que as instituições filantrópicas encerrem suas atividades substitutivas à escolarização e passem a atuar como apoio às escolas comuns, dentro da perspectiva inclusiva; e
  3. a revogação por inconstitucionalidade do Decreto por ofertar escolas segregadas, exclusivas.

Assino,

Andressa Pellanda,
coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação,

Em nome da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Acesse o site da Campanha: https://campanha.org.br/noticias/2020/10/02/carta-a-sociedade-brasileira-decreto-n-105022020-que-institui-a-politica-nacional-de-educacao-especial-equitativa-inclusiva-e-com-aprendizado-ao-longo-da-vida/

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação trabalha há 20 anos para transformar a educação pública brasileira e garantir escolas de qualidade para milhões de estudantes. Colabore com a Campanha.