segunda-feira, 13 de julho de 2020

MEC revoga portaria sobre políticas de inclusão na pós-graduação que incluíam acesso de negros, indígenas e pessoas com deficiência


Segundo Associação Nacional de Pós-graduação (ANPG), a medida vai afetar instituições que ainda não haviam implantado programa de cotas. Entidade diz que tentará reverter medida.

Por G1

Segundo Associação Nacional de Pós-graduação (ANPG), a medida vai afetar instituições que ainda não haviam implantado programas de cotas. A associação afirma que, ainda assim, as universidades poderão continuar com os programas implementados ou criar outros, com base na autonomia universitária. A entidade afirma que tentará reverter a medida.

"As cotas na pós foram uma vitória de quando o MEC estava a serviço de pensar a nação e estava comprometido em, através da educação, reparar dívidas históricas com nosso povo, em especial com a população negra e originária", afirma Flávia Calé, presidente da ANPG.

De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais (SIS) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 25,2% dos jovens brasileiros com entre 18 e 24 anos estavam cursando ou já haviam concluído o ensino superior em 2018. No recorte racial, o índice é de 36,1% para brancos e de 18,3% para os jovens negros (pretos ou pardos).


"Hoje, o MEC está a serviço de um projeto ideológico ultraconservador e de destruição da educação. Weintraub está perto de ser demitido, mas carrega esse projeto até o fim. Vamos, através das instituições democráticas como o parlamento, tentar reverter essa medida, assim como conseguimos com adiamento do Enem, e reverter a tentativa de impor reitores biônicos nas universidades públicas. Comunidade acadêmica está coesa na defesa da democratização do acesso à universidade, à pesquisa e ao conhecimento", declara.

Calé se refere a duas recentes polêmicas envolvendo o Ministério da Educação. Entre elas, está a tentativa de Abraham Weintraub de manter a data de inscrição e realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), até então marcado para novembro, mesmo com todas as escolas sem aulas presenciais. Após pressão da sociedade civil e do parlamento, o MEC adiou o fim das inscrições, estendeu o prazo para pagamento do boleto e decidiu abrir uma enquete entre os participantes para que, eles mesmos, escolhem as datas. Entre as três opções, duas são em 2021.

Outro ponto foi a tentativa de nomear reitores que tivessem mandatos encerrados durante a pandemia, o que na prática suspende processos de eleição na comunidade acadêmica. A medida poderia impactar na gestão de 19 universidades e institutos federais, segundo associações de reitores e dirigentes. O texto foi publicado e, dias depois, devolvido ao Planalto pelo presidente do Congresso, o senador David Alcolumbre, que alegou inconstitucionalidade no tema.

Ações afirmativas em retrocesso

Ao ser publicada, em 2016, a portaria sobre ações afirmativas citava o Estatuto da Igualdade Racial e a constitucionalidade de ações afirmativas, e também considerava que, desde 2014, já havia reserva de vagas em processos seletivos para o serviço público.

Ela instituía que as universidades e institutos federais de ensino deveriam criar propostas de inclusão "de negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de pós-graduação (Mestrado, Mestrado Profissional e Doutorado), como Políticas de Ações Afirmativas", e informar ao MEC.

O ministério, por sua vez, criaria um grupo de trabalho para monitorar as ações. Já a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) faria censos para mensurar a entrada de estudantes destes grupos na pós-graduação.


Fonte: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/06/18/mec-revoga-portaria-que-criava-politicas-de-inclusao-na-pos-graduacoes-como-o-acesso-a-negros-indigenas-e-deficientes.ghtml

MEC revoga Portaria que acabava com incentivo a Cotas



Por G1
23/06/2020 04h45

O Ministério da Educação (MEC) tornou sem efeito a portaria assinada pelo ex-ministro Abraham Weintraub, que acabava com incentivo a cotas para negros, indígenas e pessoas com deficiência em cursos de pós-graduação. A revogação foi publicada no início da madrugada desta terça-feira (23) no Diário Oficial da União, e foi assinada pelo ministro interino da pasta, Antonio Paulo Vogel de Medeiros.

A medida do dia 18 de junho foi o último ato de Weintraub no ministério. No dia seguinte ele viajou para os Estados Unidos, desembarcando em Miami no sábado (20).

A medida foi criticada pelo Congresso e também foi alvo do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (SFT). Ele deu prazo de 48 horas para a Advocacia Geral da União (AGU) se manifestar sobre a ação.

A portaria também recebeu críticas da Associação Nacional de Pós-graduação (ANPG). Segundo o organismo, a medida afetaria instituições que ainda não haviam implantado programas de cotas.



COVID-19: Por que as pessoas com deficiência não contam?


Por DOUGLAS CHRISTIAN FERRARI DE MELO*


Há tempos as pessoas com deficiência são consideradas “descartáveis”. Lilia Lobo (2012), em Os Infames da História, nos conta um pouco da história de pobres, escravos e deficientes no Brasil até a primeira metade do século XX. Desde aquela época os “corpos desviantes”, aqueles que não serviam, eram deixados à margem.

No Império, surgiram as primeiras instituições “especializadas”, para “cuidar” dos que eram considerados fardo social. Corpos apagados e silenciados sempre. A partir da Revolução Industrial, foi preciso começar a considerar a produtividade dos que representavam a “menos valia”, e diferenciar os “treináveis” dos “não treináveis”. Em todos os casos, esses corpos era apagados silenciados.

A partir do início do processo de inclusão social (inclusive escolar), houve tentativas de trazer essas pessoas ao protagonismo a essas pessoas. Não eram mais as pessoas com deficiência que tinham que adaptar-se à sociedade (e à escola), mas o contrário.
Entretanto, estudos mostram que essa realidade tem avançado pouco ou muito lentamente. As pessoas com deficiência continuam, vistas como incapazes pela grande maioria das pessoas. Seguem invisibilizadas e sofrendo todo tipo de preconceito e discriminação.

Realidade que o Coronavírus (Covid-19) apenas agravou. Escancarou vulnerabilidades sociais como a desigualdade econômica. Outro desses sinais é a falta de inclusão, nos dados oficiais, de informações relativas a pessoas com deficiência mortas ou infectadas pelo Covid-19. A ausência desses dados é comum em todos os níveis governamentais no país.

Vale ressaltar, que nos painéis-covid dos estados e do Ministério da Saúde é possível encontrar informações estratificadas por sexo, raça, tipo de comorbidade, bairro de residência (análise socioeconômica), se é profissional de saúde, entre outras. No entanto, mesmo que se saiba, informalmente, de pessoas com deficiência que estão infectadas ou que faleceram devido ao vírus, elas seguem oficialmente invisíveis. O estado do Espírito Santo se destaca com a recente lei 11.130/2020 sancionada pelo Governo do Estado e que inclui os capixabas com deficiência no grupo de risco.

Essa ausência de informações e diagnósticos específicos, já alertada pela ONU e pela OMS no início da pandemia, dificulta consideravelmente a realização de pesquisas e análise de dados; além da elaboração de políticas públicas direcionadas.
Enfim, enquanto não conseguimos elaborar nada oficialmente direcionado a esse público, para durante a pandemia ou depois dela, ouvimos relatos de pessoas cegas que não recebem ajuda devido à necessidade de contato e de pessoas surdas que não conseguem fazer leitura labial por causa da necessidade do uso de máscaras.

Muitas perguntas seguem sem resposta:
- Como estão as pessoas com deficiência no retorno ao trabalho, após a flexibilização das atividades não essenciais?
- Como será o retorno ao cotidiano escolar para esse público?
 A quem interessa que as pessoas com deficiência continuem e não contar?
 Por que não há dados sobre essas pessoas em um momento tão crucial para todos?
- Se a necropolítica e o capacitismo não param, até quando continuaremos inertes?


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DOUGLAS CHRISTIAN FERRARI DE MELO: Doutor em educação no Programa de Pós-graduação em Educação pela UfES. Possui graduação em pedagogia (2017) pela Uniube e em história (2003) pela Ufes, especialização (2004) e mestrado (2007) em História pela Ufes. Foi professor da Prefeitura Municipal de Vila Velha de 2004 a 2017. É professor adjunto do Departamento de Educação, Política e Sociedade, do Programa de Pós-Graduação de Mestrado Profissional em Educação-CE/PPGMPE/Ufes, do Programa de Pós-graduação em Educação-CE/PPGE/Ufes e foi coordenador do Núcleo de Acessibilidade da Ufes (NAUFES) (2017-2019). É membro do conselho editorial/científico da Editora Brasil Multicultural, Coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa em Fundamentos da Educação Especial - GEPFEE/UFES e vice coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa em Deficiência Visual e Cão-guia. Trabalha com as questões das áreas da história da educação, políticas públicas de educação, de educação especial e subárea da deficiência visual, tendo como referenciais teóricos a teoria Histórico-cultural de Vigotiski, a Pedagogia Histórico-crítica e o pensamento político, educacional e filosófico de Antônio Gramsci. Organizador dos livros: "Educação e direito: inclusão das pessoas com deficiência visual" e "Práticas Pedagógicas no Atendimento Educacional Especializado: pessoas com deficiência visual", "Pessoas com deficiência no ensino superior: desafios e possibilidades" e "Práticas inclusivas: saberes, estratégias e recursos didáticos". Autor do livro: Entre a luta e o direito: "Políticas públicas de educação para pessoas com deficiência visual" e Gramsci e a educação especial". Realiza formação de professores na área de Educação Especial, Deficiência Visual e AEE.
Informações coletadas do Lattes em 23/06/2020

PARECER CNE/CP Nº: 11/2020 - Orientações Educacionais para a Realização de Aulas e Atividades Pedagógicas Presenciais e Não Presenciais no contexto da Pandemia.

INTERESSADO: Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno UF: DF

ASSUNTO: Orientações Educacionais para a Realização de Aulas e Atividades Pedagógicas Presenciais e Não Presenciais no contexto da Pandemia.

COMISSÃO: Luiz Roberto Liza Curi (Presidente), Maria Helena Guimarães de Castro (Relatora), Eduardo Deschamps (Correlator), Alessio Costa Lima, Antonio Carbonari NeƩo, Antonio de Araujo Freitas Júnior e Joaquim José Soares Neto (membros)

PROCESSO Nº: 23001.000334/2020-21
PARECER CNE/CP Nº: 11/2020
COLEGIADO: CP
APROVADO EM: 7/7/2020


8. Orientações para o Atendimento ao Público da Educação Especial:

Compete à área da Educação Especial, especificamente, o Atendimento Educacional Especializado (AEE), assim, o retorno à escola do público da Educação Especial deve seguir as mesmas orientações gerais, de acordo com o poder regulatório próprio dos sistemas de ensino federal, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios que possuem a liberdade de organização do fazer pedagógico.

Enquanto durar a situação de pandemia, somente deverão retornar às aulas presenciais ou ao atendimento educacional especializado por indicação da equipe técnica da escola, ou quando os riscos de contaminação estiverem em curva descendente. O CNE recomenda que o atendimento educacional especializado aos estudantes de Educação Especial, incluídos aqueles com deficiência, transtornos do espectro autista e altas habilidades ou superdotação, seja oferecido de acordo com as seguintes orientações:

- O atendimento deve ser ofertado, pelos sistemas de ensino, em atividades não presenciais ou presenciais, a partir de uma avaliação do estudante pela equipe técnica da escola. O estudante e suas famílias devem ser contatados para informar as possibilidades de acesso aos meios e tecnologias de informação e comunicação;

- Os professores do Atendimento Educacional Especializado deverão elaborar com apoio da equipe escolar, um Plano de Ensino Individual (PEI), para cada aluno, de acordo com suas singularidades;

- As orientações e atividades não presenciais deverão ocorrer através de ações articuladas entre o professor do AEE e o acompanhante (mediador presencial) no domicílio, ou com o próprio estudante quando possível, por meio de tecnologias de comunicação;

- Deverão ser previstas ações de apoio aos familiares ou mediadores, na realização de atividades remotas, avaliações e acompanhamento;

- Aos professores especializados cabe a promoção de acessibilidade nas atividades, disponibilizando a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) para os surdos, materiais pedagógicos acessíveis e adequados à interação e comunicação aos alunos com outros impedimentos;

- Aos alunos com altas habilidades e superdotação deve ser garantido acesso ao atendimento educacional especializado, presencial ou não presencial, considerando seu programa de enriquecimento curricular e atividades suplementares.

8.1. Os estudantes da Educação Especial devem ser privados de interações presenciais, considerando questões como: 

- Os alunos surdos sinalizantes não podem usar máscaras, pois as expressões faciais são elementos linguísticos da LIBRAS, e os estudantes com deficiência auditiva que se beneficiam de oralidade precisam fazer leitura labial;

- Os estudantes que necessitam do profissional de apoio escolar para alimentação, higiene e locomoção ficam em risco, pela exigência de contato físico direto;

- Os estudantes cegos precisam de contatos diretos para locomoção, seja com pessoas ou objetos como bengalas, corrimões, maçanetas etc.

- Os alunos com deficiência intelectual podem apresentar dificuldades em atendimento de regras sobre as recomendações de higiene e cuidados gerais para evitar contágio;

- Os estudantes com autismo têm dificuldades nas rotinas e de obediência de regras, tocam sempre olhos e boca, além de exigirem acompanhamentos nas atividades de vida diária;

- Os estudantes com síndromes e/ou os que apresentam disfunções da imunidade, cardiopatas congênitas, doenças respiratórias e outras podem ser suscetíveis a maior risco de contaminação, por isto o contato deverá ser revestido de todos os cuidados possíveis, inclusive com a exigência de equipamentos de proteção individual para ambos;

- Os estudantes com comprometimento na área intelectual podem apresentar dificuldades de compreensão e atendimento das normas e recomendações de afastamento social e prevenção de contaminação, por isto, o contato deverá ser revestido de todos os cuidados possíveis, inclusive com a exigência de equipamentos de proteção individual para ambos;


- Aos estudantes com deficiência física por lesão medular ou encefalopatia crônica como paralisia cerebral, hemiplegias, paraplegias e tetraplegias e outras, e aos que estão suscetíveis à contaminação pelo uso de sondas, bolsas coletoras, fraldas e manuseios físicos para a higiene, alimentação e locomoção, recomenda-se não apenas o uso de equipamento de proteção individual, mas extrema limpeza do ambiente físico.

Para acessar o PARECER na íntegra clique aqui

Fonte: https://www.cnm.org.br/cms/images/stories/Links/09072020_Parecer_CNE_CP11_2020.pdf

Edgar Morin: "Essa crise nos leva a questionar nosso modo de vida, nossas reais necessidades mascaradas nas alienações da vida cotidiana"


Em entrevista ao Le Monde, o sociólogo e filósofo avalia que a corrida pela lucratividade e as deficiências em nossa maneira de pensar são responsáveis por inúmeros desastres humanos causados pela pandemia de Covid-19
Por Nicolas Truong 23/03/2020


Créditos da foto: Edgar Morin, sociólogo e filósofo, em Montpellier (Hérault), em janeiro de 2019. (Olivier Metzger para o Le Monde)


Nascido em 1921, ex-combatente da resistência, sociólogo e filósofo, pensador transdisciplinar e indisciplinado, doutor honoris causa de trinta e quatro universidades em todo o mundo, Edgar Morin está, desde 17 de março, confinado em seu apartamento em Montpellier com sua esposa, a socióloga Sabah Abouessalam. Nascido em 1921, ex-combatente da resistência, sociólogo e filósofo, pensador transdisciplinar e indisciplinado, doutor honoris causa de trinta e quatro universidades em todo o mundo, Edgar Morin está, desde 17 de março, confinado em seu apartamento em Montpellier com sua esposa, a socióloga Sabah Abouessalam.

É da rue Jean-Jacques Rousseau, onde reside, que o autor de La Voie (2011) e Terre-Patrie (1993), que publicou recentemente Les souvenirs viennent à ma rencontre (Fayard, 2019), um trabalho de mais de 700 páginas em que o intelectual se lembra profundamente das histórias, reuniões e "magnetizações" mais fortes de sua existência, redefine um novo contrato social, realiza algumas confissões e analisa uma crise global que "estimula enormemente”.

A pandemia devido a essa forma de coronavírus era previsível?
Todas as futurologias do século XX que previram o futuro ao transportar as correntes que atravessam o presente para o futuro entraram em colapso. No entanto, continuamos prevendo 2025 e 2050 enquanto somos incapazes de entender 2020. A experiência das irrupções do inesperado na história pouco penetrou nas consciências. Ora, o advento de um imprevisível era previsível, mas não sua natureza. Daí minha máxima permanente: "Espere o inesperado. "

Além disso, fui um dos poucos que previram desastres em cadeia causados pelo desencadeamento descontrolado da mundialização tecnoeconômica, incluindo os resultantes da degradação da biosfera e da degradação das sociedades. Mas eu não tinha previsto nenhum desastre viral.

Houve, no entanto, um profeta dessa catástrofe: Bill Gates, em uma conferência em abril de 2012, anunciando que o perigo imediato para a humanidade não era nuclear, mas sanitário. Ele havia visto na epidemia de Ebola, rapidamente controlada por acaso, o anúncio do perigo global de um possível vírus com alto poder de contaminação; e destacou as medidas de prevenção necessárias, incluindo equipamentos hospitalares adequados. Mas, apesar desse aviso público, nada foi feito nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar. Pois o conforto intelectual e o hábito têm horror das mensagens que os incomodam.

Como explicar a falta de preparação francesa?
Em muitos países, incluindo a França, a estratégia econômica just-in-time, substituindo a de armazenamento, deixou nosso sistema de saúde desprovido de máscaras, instrumentos de teste, aparelhos respiratórios; isso, juntamente com a doutrina liberal que comercializa o hospital e reduz seus recursos, contribuiu para o curso catastrófico da epidemia.

Em que tipo de imprevisto essa crise nos coloca?
Essa epidemia nos traz um festival de incertezas. Não temos certeza sobre a origem do vírus: mercado insalubre de Wuhan ou laboratório vizinho, ainda não sabemos acerca das mutações que sofre ou poderá sofrer o vírus durante sua propagação. Não sabemos quando a epidemia regredirá e se o vírus permanecerá endêmico. Não sabemos até quando e em que medida o confinamento nos fará sofrer impedimentos, restrições e racionamento. Não sabemos quais serão as consequências políticas, econômicas, nacionais e globais das restrições trazidas por confinamentos. Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, uma mistura dos dois: estamos caminhando para novas incertezas.

Essa crise global de saúde é uma crise de complexidade?
O conhecimento se multiplica exponencialmente, de repente, vai além da nossa capacidade de nos apropriarmos e, acima de tudo, lança o desafio da complexidade: como confrontar, selecionar, organizar adequadamente esse conhecimento, conectando-o e integrando incertezas. Para mim, isso revela mais uma vez as deficiências do modo de conhecimento que nos foi inculcado, que nos faz separar o que é inseparável e reduzir a um único elemento aquilo que forma um todo ao mesmo tempo uno e diverso. De fato, a revelação avassaladora das mudanças pelas quais estamos passando é que tudo o que parecia separado está ligado, pois uma catástrofe na saúde traz catastrofes em cadeia para tudo o que é humano.

É trágico que o pensamento disjuntivo e redutivo reine supremo em nossa civilização e detenha o controle na política e na economia. Essa deficiência formidável levou a erros de diagnóstico, prevenção e decisões aberrantes. Acrescento que a obsessão com a lucratividade entre nossos dominantes e dirigentes levou a economias culpadas, como em hospitais e no abandono da produção de máscaras na França. Na minha opinião, as deficiências no modo de pensar, combinadas ao domínio indiscutível de uma sede frenética por lucros, são responsáveis %u20B%u20Bpor inúmeros desastres humanos, incluindo aqueles que ocorrem desde fevereiro de 2020.

Tínhamos uma visão unitária da ciência. No entanto, multiplicam-se em seu interior debates epidemiológicos e controvérsias terapêuticas. A ciência biomédica se tornou um novo campo de batalha?

É mais do que legítimo que a ciência seja convocada pelas autoridades para combater a epidemia. No entanto, os cidadãos, inicialmente tranquilizados, sobretudo por ocasião do remédio do professor Raoult, descobrem em seguida posições diferentes e até contrárias. Cidadãos mais bem informados estão descobrindo que determinados grandes cientistas têm relações de interesse com a indústria farmacêutica, cujos lobbies são poderosos junto a ministérios e na mídia, capazes de inspirar campanhas para ridicularizar idéias em desconformidade [com as dominantes].

Lembremo-nos do professor Montagnier que, contra medalhões e mandarins da ciência, foi, com alguns outros, o descobridor do HIV, o vírus da Aids. Esta é uma oportunidade para entender que a ciência não é um repertório de verdades absolutas (ao contrário da religião), mas que suas teorias são biodegradáveis sob o efeito de novas descobertas. As teorias aceitas tendem a se tornar dogmáticas nas cúpulas acadêmicas, e são os que delas se desviam, de Pasteur a Einstein, passando por Darwin, e Crick e Watson, descobridores da dupla hélice do DNA, que fazem as ciências progredirem. É que controvérsias, longe de serem anomalias, são necessárias para esse progresso. Mais uma vez, no desconhecido, tudo progride por tentativa e erro, bem como por inovações desviantes inicialmente incompreendidas e rejeitadas. Esta é a aventura terapêutica contra vírus. Os remédios podem aparecer onde não eram esperados.

A ciência é devastada pela hiperespecialização, que é o fechamento e a compartimentalização do conhecimento especializado, em vez de sua comunicação. E são sobretudo pesquisadores independentes que estabeleceram desde o início da epidemia uma cooperação, que agora se amplia entre infectologistas e médicos em todo o mundo. A ciência vive da comunicação, toda censura a bloqueia. Portanto, devemos ver a grandeza da ciência contemporânea ao mesmo tempo que suas fraquezas.

Como podemos tirar proveito da crise?
Em meu ensaio Sur la crise (Flammarion), tentei mostrar que uma crise, além da desestabilização e da incerteza que traz, se manifesta pelo fracasso das regulações de um sistema que, para manter sua estabilidade, inibe ou repele desvios (feedback negativo). Deixando de ser reprimidos, esses desvios (feedback positivo) tornam-se tendências ativas que, se se desenvolverem, ameaçam cada vez mais perturbar e bloquear o sistema em crise. Nos sistemas vivos e especialmente sociais, o desenvolvimento vitorioso de desvios que se tornaram tendências levará a transformações, regressivas ou progressivas, até mesmo a uma revolução.

A crise em uma sociedade gera dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade na busca de novas soluções. O segundo é a busca de um retorno à estabilidade passada ou a adesão a uma salvação providencial, bem como a denúncia ou imolação de um culpado. Esse culpado pode ter cometido os erros que causaram a crise, ou pode ser um culpado imaginário, bode expiatório que deve ser eliminado.

De fato, idéias desviantes e marginalizadas estão se espalhando confusamente: retorno à soberania, Estado de bem-estar social, defesa dos serviços públicos contra a privatização, realocações, desmondialização, antineoliberalismo, necessidade de uma nova política. Personalidades e ideologias são identificadas como culpadas.

E também vemos, na carência de poderes públicos, uma proliferação de imaginações solidárias: produção alternativa à falta de máscaras por empresa ou indústria reconvertida ou produção artesanal, agrupamento de produtores locais, entregas gratuitas em domicílio, ajuda mútua entre vizinhos, refeições gratuitas para moradores de rua, creche; além disso, o confinamento estimula as capacidades auto-organizadas para remediar a perda de liberdade de movimento através da leitura, música e filmes. Assim, autonomia e inventividade são estimuladas pela crise.

Estamos testemunhando uma verdadeira tomada de consciência da era planetária?
Espero que a epidemia excepcional e mortal que estamos enfrentando nos conscientize não apenas de que fomos conduzidos para o interior da incrível aventura da Humanidade, mas também de que vivemos em um mundo simultaneamente incerto e trágico. A crença de que a livre concorrência e o crescimento econômico são uma panaceia social universal escamoteia a tragédia da história humana que essa crença agrava.

A loucura eufórica do transhumanismo leva ao clímax o mito da necessidade histórica do progresso e do domínio do homem, não apenas da natureza, mas também de seu destino, ao prever que o homem alcançará a imortalidade e o controle de tudo pela inteligência artificial. Ora, somos jogadores / jogados, possuidores / possuídos, poderosos / fracos. Se podemos atrasar a morte por envelhecimento, nunca conseguiremos eliminar acidentes fatais em que nossos corpos são esmagados, nunca conseguiremos nos livrar de bactérias e vírus que se automodificam constantemente para resistir a remédios, antibióticos, antivirais, vacinas .

A pandemia não acentuou a reclusão doméstica e o fechamento geopolítico?
A epidemia global do vírus desencadeou uma crise sanitária que se agravou na França, causando confinamentos que sufocam a economia, transformando um estilo de vida extrovertido em introversão para a casa e colocando em violenta crise a mundialização. Esta havia criado uma interdependência, mas sem que essa interdependência fosse acompanhada de solidariedade. Pior, causou, em reação, confinamentos étnicos, nacionais e religiosos que se agravaram nas primeiras décadas deste século.

Então, na ausência de instituições internacionais e até europeias capazes de reagir com ações solidárias, os Estados nacionais se voltaram para si mesmos. A República Tcheca até roubou máscaras destinadas à Itália e os Estados Unidos conseguiram desviar para si um estoque de máscaras chinesas inicialmente destinadas à França. A crise da saúde, portanto, desencadeou uma cadeia de crises que se concatenam. Essa policrise ou megacrise se estende do existencial ao político, passando pela economia, do indivíduo ao planetário, passando pelas famílias, regiões, Estados. Em suma, um pequeno vírus em uma cidade ignorada na China provocou a perturbação de um mundo.

Quais são os contornos dessa convulsão global?
Como crise planetária, ela coloca em destaque a comunidade de destino de todos os seres humanos, ligada inseparavelmente com o destino bioecológico do planeta Terra; intensifica simultaneamente a crise da humanidade que não consegue se constituir em humanidade. Como crise econômica, abala todos os dogmas que governam a economia e ameaça agravar-se em caos e escassez em nosso futuro. Como crise nacional, revela as carências de uma política que favorece o capital em detrimento do trabalho, sacrificando a prevenção e a precaução para aumentar a lucratividade e a competitividade. Como crise social, dá destaque as desigualdades entre aqueles que vivem em pequenas habitações povoadas de crianças e pais e aqueles que foram capazes de fugir para sua segunda residência verde.

Como crise civilizacional, nos conduz a perceber as deficiências de solidariedade e a intoxicação consumista que nossa civilização desenvolveu; e nos leva a pensar em uma política de civilização (Une politique de civilisation, com Sami Naïr, Arléa 1997) . Como crise intelectual, deve revelar-nos o enorme buraco negro em nossa inteligência, que torna as complexidades óbvias da realidade invisíveis para nós.

Como crise existencial, nos leva a questionar nosso modo de vida, nossas reais necessidades, nossas verdadeiras aspirações mascaradas nas alienações da vida cotidiana, para fazer a diferença entre a diversão pascaliana que nos afasta de nossas verdades e a felicidade que encontramos ao ler, ouvir ou ver obras-primas que nos fazem encarar de frente nosso destino humano. E, acima de tudo, deve abrir nossas mentes há muito tempo confinadas ao imediato, ao secundário e ao frívolo, em vez do essencial: amor e amizade pela nossa realização individual, a comunidade e solidariedade dos nossos "eu" nos "nós", o destino da Humanidade da qual cada um de nós é uma partícula. Em suma, o confinamento físico deve incentivar o descon%uF01namento das mentes.

O que é o confinamento? E como você o vive?
A experiência do confinamento domiciliar duradouro imposto a uma nação é uma experiência surpreendente. O confinamento do gueto de Varsóvia permitia que seus habitantes lá circulassem. Mas o confinamento do gueto preparava a morte e nosso confinamento é uma defesa da vida.

Eu o suporto em condições privilegiadas, apartamento térreo com jardim, onde ao sol posso me alegrar com a chegada da primavera, muito protegido por Sabah, minha esposa, com vizinhos gentis fazendo nossas compras, comunicando-me com meus próximos, meus afetos, meus amigos, solicitado pela imprensa, rádio ou televisão para dar meu diagnóstico, o que pude fazer pelo Skype. Mas sei que, desde o início, os muito numerosos em moradias apertadas suportam mal a superlotação, que os solitários e principalmente os sem-teto são vítimas de confinamento.

Quais podem ser os efeitos do confinamento prolongado?
Sei que um confinamento prolongado será cada vez mais vivido como um impedimento. Os vídeos não podem substituir permanentemente as idas ao cinema, os tablets não podem substituir permanentemente as visitas ao livreiro. Skype e Zoom não permitem contato carnal, o tilintar do copo quando brindamos. A comida doméstica, mesmo excelente, não suprime o desejo de um restaurante. Os documentários não suprimem o desejo de ir lá para ver paisagens, cidades e museus, eles não tirarão meu desejo de reencontrar a Itália e a Espanha. A redução ao indispensável também dá sede de supérfluo.

Espero que a experiência de confinamento modere a compulsão por movimento, a fuga para Bangcoc para trazer memórias e contá-las aos amigos, espero que ajude a reduzir o consumismo, ou seja, a intoxicação pelo consumo e a obediência à excitação publicitária, em favor de alimentos saudáveis e saborosos, produtos sustentáveis e não descartáveis. Mas serão necessários outros incentivos e novas tomadas de consciência para que ocorra uma revolução nessa área. No entanto, há esperança de que a lenta evolução iniciada se acelere.

O que será aquilo que estamos chamando de "mundo de depois"?
Em primeiro lugar, o que manteremos, cidadãos, o que manterão as autoridades públicas da experiência de confinamento? Apenas uma parte? Tudo será esquecido, anestesiado ou transformado em folclore? O que parece muito provável é que a disseminação do digital, amplificada pelo confinamento (teletrabalho, teleconferência, Skype, uso intensivo da Internet), continuará com aspectos negativos e positivos que não são tema desta entrevista. Vamos ao essencial. A saída da confinamento será o começo da saída da megacrise ou seu agravamento? Crescimento ou depressão? Crise econômica enorme? Crise alimentar global? Continuação da mundialização ou recuo autárquico?

Qual será o futuro da mundialização? O neoliberalismo abalado retomará o controle? As nações gigantes se oporão mais do que no passado? Os conflitos armados, mais ou menos mitigados pela crise, se exacerbarão? Haverá um momento internacional salvador em proveito da cooperação? Haverá algum progresso político, econômico e social, como ocorreu logo após a Segunda Guerra Mundial? O pedido de solidariedade provocado durante o confinamento será prolongado e intensificado, não apenas para médicos e enfermeiras, mas também para coletores de lixo, manipuladores, entregadores, caixas, sem os quais não teríamos sido capazes sobreviver quando conseguimos passar sem o Medef (Mouvement des entreprises de France; Movimento das empresas da França) e o CAC 40 (índice da Bolsa que reúne as 40 maiores empresas da França)? As inúmeras e dispersas práticas de solidariedade de antes da epidemia serão ampliadas? Os que saírem do confinamento retomarão o ciclo cronometrado, acelerado, egoísta e consumista? Ou haverá um novo boom na vida amigável e amorosa em direção a uma civilização onde a poesia da vida se desdobra, onde o "eu" floresce em um "nós"? Não podemos saber se, após o confinamento, o comportamento e as ideias inovadoras retomarão seu impulso, se revolucionarão a política e a economia, ou se a ordem abalada se reestabelecerá. Podemos temer com força a regressão geral que já estava ocorrendo durante os primeiros vinte anos deste século (crise da democracia, corrupção e demagogia triunfantes, regimes neoautoritários, impulsos nacionalistas, xenófobos e racistas).

Todas essas regressões (e, na melhor das hipóteses, estagnações) são prováveis %u20B%u20Benquanto não aparecer o novo caminho político-ecológico-econômico-social guiado por um humanismo regenerado. Este multiplicaria as verdadeiras reformas, que não são cortes no orçamento, mas reformas da civilização, da sociedade, ligadas a reformas da vida.

Esse novo caminho associaria (como indiquei em La Voie) os termos contraditórios: "mundialização" (com tudo o que é cooperação) e "desmundialização" (para estabelecer a auto-suficiência alimentar e salvar os territórios da desertificação); "crescimento" (da economia de necessidades básicas, da sustentabilidade, da agricultura orgânica) e "não crescimento" (da economia do frívolo, do ilusório, do descartável); "desenvolvimento" (de tudo que produz bem-estar, saúde, liberdade) e "envolvimento" (em solidariedades comunitárias).

Você conhece as perguntas kantianas 
- O que posso saber? 
- O que devo fazer? 
- O que posso esperar? 
- O que é homem? -, que foram e continuam sendo os de sua vida. Que atitude ética devemos adotar diante do inesperado?

A pós-epidemia será uma aventura incerta, onde as forças do pior e as do melhor se desenvolverão, sendo estas ainda fracas e dispersas. Saibamos enfim que o pior não é certo, que o improvável pode acontecer e que, no combate titânico e inextinguível entre os inimigos inseparáveis %u20B%u20Bque são Eros e Thanatos, é saudável e enérgico ficar do lado de Eros.

Sua mãe, Luna, foi ela mesma acometida de gripe espanhola. E o trauma pré-natal que abre seu último livro tende a mostrar que ele lhe deu uma força vital, uma capacidade extraordinária de resistir à morte. Você ainda sente esse impulso vital no cerne desta crise global?

A gripe espanhola deu a minha mãe um problema no coração e o conselho médico para não ter filhos. Ela tentou dois abortos, o segundo falhou, mas a criança nasceu quase asfixiada, estrangulada pelo cordão umbilical. Posso ter adquirido forças de resistência no útero que permaneceram comigo a vida toda, mas só consegui sobreviver com a ajuda de outros, o ginecologista que me deu tapas durante meia hora antes que proferisse meu primeiro choro, depois sorte durante a Resistência, o hospital (hepatite, tuberculose), Sabah, minha companheira e esposa. É verdade que "o impulso vital" não me deixou; até aumentou durante a crise global. Qualquer crise me estimula, e esta, enorme, me estimula enormemente.

*Publicado originalmente em 'Le Monde' | Tradução de Aluisio SchumacherNascido em 1921, ex-combatente da resistência, sociólogo e filósofo, pensador transdisciplinar e indisciplinado, doutor honoris causa de trinta e quatro universidades em todo o mundo, Edgar Morin está, desde 17 de março, confinado em seu apartamento em Montpellier com sua esposa, a socióloga Sabah Abouessalam.

É da rue Jean-Jacques Rousseau, onde reside, que o autor de La Voie (2011) e Terre-Patrie (1993), que publicou recentemente Les souvenirs viennent à ma rencontre (Fayard, 2019), um trabalho de mais de 700 páginas em que o intelectual se lembra profundamente das histórias, reuniões e "magnetizações" mais fortes de sua existência, redefine um novo contrato social, realiza algumas confissões e analisa uma crise global que "estimula enormemente”.

A pandemia devido a essa forma de coronavírus era previsível?
Todas as futurologias do século XX que previram o futuro ao transportar as correntes que atravessam o presente para o futuro entraram em colapso. No entanto, continuamos prevendo 2025 e 2050 enquanto somos incapazes de entender 2020. A experiência das irrupções do inesperado na história pouco penetrou nas consciências. Ora, o advento de um imprevisível era previsível, mas não sua natureza. Daí minha máxima permanente: "Espere o inesperado. "

Além disso, fui um dos poucos que previram desastres em cadeia causados pelo desencadeamento descontrolado da mundialização tecnoeconômica, incluindo os resultantes da degradação da biosfera e da degradação das sociedades. Mas eu não tinha previsto nenhum desastre viral.

Houve, no entanto, um profeta dessa catástrofe: Bill Gates, em uma conferência em abril de 2012, anunciando que o perigo imediato para a humanidade não era nuclear, mas sanitário. Ele havia visto na epidemia de Ebola, rapidamente controlada por acaso, o anúncio do perigo global de um possível vírus com alto poder de contaminação; e destacou as medidas de prevenção necessárias, incluindo equipamentos hospitalares adequados. Mas, apesar desse aviso público, nada foi feito nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar. Pois o conforto intelectual e o hábito têm horror das mensagens que os incomodam.

Como explicar a falta de preparação francesa?
Em muitos países, incluindo a França, a estratégia econômica just-in-time, substituindo a de armazenamento, deixou nosso sistema de saúde desprovido de máscaras, instrumentos de teste, aparelhos respiratórios; isso, juntamente com a doutrina liberal que comercializa o hospital e reduz seus recursos, contribuiu para o curso catastrófico da epidemia.

Em que tipo de imprevisto essa crise nos coloca?
Essa epidemia nos traz um festival de incertezas. Não temos certeza sobre a origem do vírus: mercado insalubre de Wuhan ou laboratório vizinho, ainda não sabemos acerca das mutações que sofre ou poderá sofrer o vírus durante sua propagação. Não sabemos quando a epidemia regredirá e se o vírus permanecerá endêmico. Não sabemos até quando e em que medida o confinamento nos fará sofrer impedimentos, restrições e racionamento. Não sabemos quais serão as consequências políticas, econômicas, nacionais e globais das restrições trazidas por confinamentos. Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, uma mistura dos dois: estamos caminhando para novas incertezas.

Essa crise global de saúde é uma crise de complexidade?
O conhecimento se multiplica exponencialmente, de repente, vai além da nossa capacidade de nos apropriarmos e, acima de tudo, lança o desafio da complexidade: como confrontar, selecionar, organizar adequadamente esse conhecimento, conectando-o e integrando incertezas. Para mim, isso revela mais uma vez as deficiências do modo de conhecimento que nos foi inculcado, que nos faz separar o que é inseparável e reduzir a um único elemento aquilo que forma um todo ao mesmo tempo uno e diverso. De fato, a revelação avassaladora das mudanças pelas quais estamos passando é que tudo o que parecia separado está ligado, pois uma catástrofe na saúde traz catastrofes em cadeia para tudo o que é humano.

É trágico que o pensamento disjuntivo e redutivo reine supremo em nossa civilização e detenha o controle na política e na economia. Essa deficiência formidável levou a erros de diagnóstico, prevenção e decisões aberrantes. Acrescento que a obsessão com a lucratividade entre nossos dominantes e dirigentes levou a economias culpadas, como em hospitais e no abandono da produção de máscaras na França. Na minha opinião, as deficiências no modo de pensar, combinadas ao domínio indiscutível de uma sede frenética por lucros, são responsáveis %u20B%u20Bpor inúmeros desastres humanos, incluindo aqueles que ocorrem desde fevereiro de 2020.

Tínhamos uma visão unitária da ciência. No entanto, multiplicam-se em seu interior debates epidemiológicos e controvérsias terapêuticas. A ciência biomédica se tornou um novo campo de batalha?

É mais do que legítimo que a ciência seja convocada pelas autoridades para combater a epidemia. No entanto, os cidadãos, inicialmente tranquilizados, sobretudo por ocasião do remédio do professor Raoult, descobrem em seguida posições diferentes e até contrárias. Cidadãos mais bem informados estão descobrindo que determinados grandes cientistas têm relações de interesse com a indústria farmacêutica, cujos lobbies são poderosos junto a ministérios e na mídia, capazes de inspirar campanhas para ridicularizar idéias em desconformidade [com as dominantes].

Lembremo-nos do professor Montagnier que, contra medalhões e mandarins da ciência, foi, com alguns outros, o descobridor do HIV, o vírus da Aids. Esta é uma oportunidade para entender que a ciência não é um repertório de verdades absolutas (ao contrário da religião), mas que suas teorias são biodegradáveis sob o efeito de novas descobertas. As teorias aceitas tendem a se tornar dogmáticas nas cúpulas acadêmicas, e são os que delas se desviam, de Pasteur a Einstein, passando por Darwin, e Crick e Watson, descobridores da dupla hélice do DNA, que fazem as ciências progredirem. É que controvérsias, longe de serem anomalias, são necessárias para esse progresso. Mais uma vez, no desconhecido, tudo progride por tentativa e erro, bem como por inovações desviantes inicialmente incompreendidas e rejeitadas. Esta é a aventura terapêutica contra vírus. Os remédios podem aparecer onde não eram esperados.

A ciência é devastada pela hiperespecialização, que é o fechamento e a compartimentalização do conhecimento especializado, em vez de sua comunicação. E são sobretudo pesquisadores independentes que estabeleceram desde o início da epidemia uma cooperação, que agora se amplia entre infectologistas e médicos em todo o mundo. A ciência vive da comunicação, toda censura a bloqueia. Portanto, devemos ver a grandeza da ciência contemporânea ao mesmo tempo que suas fraquezas.

Como podemos tirar proveito da crise?
Em meu ensaio Sur la crise (Flammarion), tentei mostrar que uma crise, além da desestabilização e da incerteza que traz, se manifesta pelo fracasso das regulações de um sistema que, para manter sua estabilidade, inibe ou repele desvios (feedback negativo). Deixando de ser reprimidos, esses desvios (feedback positivo) tornam-se tendências ativas que, se se desenvolverem, ameaçam cada vez mais perturbar e bloquear o sistema em crise. Nos sistemas vivos e especialmente sociais, o desenvolvimento vitorioso de desvios que se tornaram tendências levará a transformações, regressivas ou progressivas, até mesmo a uma revolução.

A crise em uma sociedade gera dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade na busca de novas soluções. O segundo é a busca de um retorno à estabilidade passada ou a adesão a uma salvação providencial, bem como a denúncia ou imolação de um culpado. Esse culpado pode ter cometido os erros que causaram a crise, ou pode ser um culpado imaginário, bode expiatório que deve ser eliminado.

De fato, idéias desviantes e marginalizadas estão se espalhando confusamente: retorno à soberania, Estado de bem-estar social, defesa dos serviços públicos contra a privatização, realocações, desmondialização, antineoliberalismo, necessidade de uma nova política. Personalidades e ideologias são identificadas como culpadas.

E também vemos, na carência de poderes públicos, uma proliferação de imaginações solidárias: produção alternativa à falta de máscaras por empresa ou indústria reconvertida ou produção artesanal, agrupamento de produtores locais, entregas gratuitas em domicílio, ajuda mútua entre vizinhos, refeições gratuitas para moradores de rua, creche; além disso, o confinamento estimula as capacidades auto-organizadas para remediar a perda de liberdade de movimento através da leitura, música e filmes. Assim, autonomia e inventividade são estimuladas pela crise.

Estamos testemunhando uma verdadeira tomada de consciência da era planetária?
Espero que a epidemia excepcional e mortal que estamos enfrentando nos conscientize não apenas de que fomos conduzidos para o interior da incrível aventura da Humanidade, mas também de que vivemos em um mundo simultaneamente incerto e trágico. A crença de que a livre concorrência e o crescimento econômico são uma panaceia social universal escamoteia a tragédia da história humana que essa crença agrava.

A loucura eufórica do transhumanismo leva ao clímax o mito da necessidade histórica do progresso e do domínio do homem, não apenas da natureza, mas também de seu destino, ao prever que o homem alcançará a imortalidade e o controle de tudo pela inteligência artificial. Ora, somos jogadores / jogados, possuidores / possuídos, poderosos / fracos. Se podemos atrasar a morte por envelhecimento, nunca conseguiremos eliminar acidentes fatais em que nossos corpos são esmagados, nunca conseguiremos nos livrar de bactérias e vírus que se automodificam constantemente para resistir a remédios, antibióticos, antivirais, vacinas .

A pandemia não acentuou a reclusão doméstica e o fechamento geopolítico?
A epidemia global do vírus desencadeou uma crise sanitária que se agravou na França, causando confinamentos que sufocam a economia, transformando um estilo de vida extrovertido em introversão para a casa e colocando em violenta crise a mundialização. Esta havia criado uma interdependência, mas sem que essa interdependência fosse acompanhada de solidariedade. Pior, causou, em reação, confinamentos étnicos, nacionais e religiosos que se agravaram nas primeiras décadas deste século.

Então, na ausência de instituições internacionais e até europeias capazes de reagir com ações solidárias, os Estados nacionais se voltaram para si mesmos. A República Tcheca até roubou máscaras destinadas à Itália e os Estados Unidos conseguiram desviar para si um estoque de máscaras chinesas inicialmente destinadas à França. A crise da saúde, portanto, desencadeou uma cadeia de crises que se concatenam. Essa policrise ou megacrise se estende do existencial ao político, passando pela economia, do indivíduo ao planetário, passando pelas famílias, regiões, Estados. Em suma, um pequeno vírus em uma cidade ignorada na China provocou a perturbação de um mundo.

Quais são os contornos dessa convulsão global?
Como crise planetária, ela coloca em destaque a comunidade de destino de todos os seres humanos, ligada inseparavelmente com o destino bioecológico do planeta Terra; intensifica simultaneamente a crise da humanidade que não consegue se constituir em humanidade. Como crise econômica, abala todos os dogmas que governam a economia e ameaça agravar-se em caos e escassez em nosso futuro. Como crise nacional, revela as carências de uma política que favorece o capital em detrimento do trabalho, sacrificando a prevenção e a precaução para aumentar a lucratividade e a competitividade. Como crise social, dá destaque as desigualdades entre aqueles que vivem em pequenas habitações povoadas de crianças e pais e aqueles que foram capazes de fugir para sua segunda residência verde.

Como crise civilizacional, nos conduz a perceber as deficiências de solidariedade e a intoxicação consumista que nossa civilização desenvolveu; e nos leva a pensar em uma política de civilização (Une politique de civilisation, com Sami Naïr, Arléa 1997) . Como crise intelectual, deve revelar-nos o enorme buraco negro em nossa inteligência, que torna as complexidades óbvias da realidade invisíveis para nós.

Como crise existencial, nos leva a questionar nosso modo de vida, nossas reais necessidades, nossas verdadeiras aspirações mascaradas nas alienações da vida cotidiana, para fazer a diferença entre a diversão pascaliana que nos afasta de nossas verdades e a felicidade que encontramos ao ler, ouvir ou ver obras-primas que nos fazem encarar de frente nosso destino humano. E, acima de tudo, deve abrir nossas mentes há muito tempo confinadas ao imediato, ao secundário e ao frívolo, em vez do essencial: amor e amizade pela nossa realização individual, a comunidade e solidariedade dos nossos "eu" nos "nós", o destino da Humanidade da qual cada um de nós é uma partícula. Em suma, o confinamento físico deve incentivar o descon%uF01namento das mentes.

O que é o confinamento? E como você o vive?
A experiência do confinamento domiciliar duradouro imposto a uma nação é uma experiência surpreendente. O confinamento do gueto de Varsóvia permitia que seus habitantes lá circulassem. Mas o confinamento do gueto preparava a morte e nosso confinamento é uma defesa da vida.

Eu o suporto em condições privilegiadas, apartamento térreo com jardim, onde ao sol posso me alegrar com a chegada da primavera, muito protegido por Sabah, minha esposa, com vizinhos gentis fazendo nossas compras, comunicando-me com meus próximos, meus afetos, meus amigos, solicitado pela imprensa, rádio ou televisão para dar meu diagnóstico, o que pude fazer pelo Skype. Mas sei que, desde o início, os muito numerosos em moradias apertadas suportam mal a superlotação, que os solitários e principalmente os sem-teto são vítimas de confinamento.

Quais podem ser os efeitos do confinamento prolongado?
Sei que um confinamento prolongado será cada vez mais vivido como um impedimento. Os vídeos não podem substituir permanentemente as idas ao cinema, os tablets não podem substituir permanentemente as visitas ao livreiro. Skype e Zoom não permitem contato carnal, o tilintar do copo quando brindamos. A comida doméstica, mesmo excelente, não suprime o desejo de um restaurante. Os documentários não suprimem o desejo de ir lá para ver paisagens, cidades e museus, eles não tirarão meu desejo de reencontrar a Itália e a Espanha. A redução ao indispensável também dá sede de supérfluo.

Espero que a experiência de confinamento modere a compulsão por movimento, a fuga para Bangcoc para trazer memórias e contá-las aos amigos, espero que ajude a reduzir o consumismo, ou seja, a intoxicação pelo consumo e a obediência à excitação publicitária, em favor de alimentos saudáveis e saborosos, produtos sustentáveis e não descartáveis. Mas serão necessários outros incentivos e novas tomadas de consciência para que ocorra uma revolução nessa área. No entanto, há esperança de que a lenta evolução iniciada se acelere.

O que será aquilo que estamos chamando de "mundo de depois"?
Em primeiro lugar, o que manteremos, cidadãos, o que manterão as autoridades públicas da experiência de confinamento? Apenas uma parte? Tudo será esquecido, anestesiado ou transformado em folclore? O que parece muito provável é que a disseminação do digital, amplificada pelo confinamento (teletrabalho, teleconferência, Skype, uso intensivo da Internet), continuará com aspectos negativos e positivos que não são tema desta entrevista. Vamos ao essencial. A saída da confinamento será o começo da saída da megacrise ou seu agravamento? Crescimento ou depressão? Crise econômica enorme? Crise alimentar global? Continuação da mundialização ou recuo autárquico?

Qual será o futuro da mundialização? O neoliberalismo abalado retomará o controle? As nações gigantes se oporão mais do que no passado? Os conflitos armados, mais ou menos mitigados pela crise, se exacerbarão? Haverá um momento internacional salvador em proveito da cooperação? Haverá algum progresso político, econômico e social, como ocorreu logo após a Segunda Guerra Mundial? O pedido de solidariedade provocado durante o confinamento será prolongado e intensificado, não apenas para médicos e enfermeiras, mas também para coletores de lixo, manipuladores, entregadores, caixas, sem os quais não teríamos sido capazes sobreviver quando conseguimos passar sem o Medef (Mouvement des entreprises de France; Movimento das empresas da França) e o CAC 40 (índice da Bolsa que reúne as 40 maiores empresas da França)? As inúmeras e dispersas práticas de solidariedade de antes da epidemia serão ampliadas? Os que saírem do confinamento retomarão o ciclo cronometrado, acelerado, egoísta e consumista? Ou haverá um novo boom na vida amigável e amorosa em direção a uma civilização onde a poesia da vida se desdobra, onde o "eu" floresce em um "nós"? Não podemos saber se, após o confinamento, o comportamento e as ideias inovadoras retomarão seu impulso, se revolucionarão a política e a economia, ou se a ordem abalada se reestabelecerá. Podemos temer com força a regressão geral que já estava ocorrendo durante os primeiros vinte anos deste século (crise da democracia, corrupção e demagogia triunfantes, regimes neoautoritários, impulsos nacionalistas, xenófobos e racistas).

Todas essas regressões (e, na melhor das hipóteses, estagnações) são prováveis %u20B%u20Benquanto não aparecer o novo caminho político-ecológico-econômico-social guiado por um humanismo regenerado. Este multiplicaria as verdadeiras reformas, que não são cortes no orçamento, mas reformas da civilização, da sociedade, ligadas a reformas da vida.

Esse novo caminho associaria (como indiquei em La Voie) os termos contraditórios: "mundialização" (com tudo o que é cooperação) e "desmundialização" (para estabelecer a auto-suficiência alimentar e salvar os territórios da desertificação); "crescimento" (da economia de necessidades básicas, da sustentabilidade, da agricultura orgânica) e "não crescimento" (da economia do frívolo, do ilusório, do descartável); "desenvolvimento" (de tudo que produz bem-estar, saúde, liberdade) e "envolvimento" (em solidariedades comunitárias).

Você conhece as perguntas kantianas - O que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? O que é homem? -, que foram e continuam sendo os de sua vida. Que atitude ética devemos adotar diante do inesperado?

A pós-epidemia será uma aventura incerta, onde as forças do pior e as do melhor se desenvolverão, sendo estas ainda fracas e dispersas. Saibamos enfim que o pior não é certo, que o improvável pode acontecer e que, no combate titânico e inextinguível entre os inimigos inseparáveis %u20B%u20Bque são Eros e Thanatos, é saudável e enérgico ficar do lado de Eros.

Sua mãe, Luna, foi ela mesma acometida de gripe espanhola. E o trauma pré-natal que abre seu último livro tende a mostrar que ele lhe deu uma força vital, uma capacidade extraordinária de resistir à morte. Você ainda sente esse impulso vital no cerne desta crise global?

A gripe espanhola deu a minha mãe um problema no coração e o conselho médico para não ter filhos. Ela tentou dois abortos, o segundo falhou, mas a criança nasceu quase asfixiada, estrangulada pelo cordão umbilical. Posso ter adquirido forças de resistência no útero que permaneceram comigo a vida toda, mas só consegui sobreviver com a ajuda de outros, o ginecologista que me deu tapas durante meia hora antes que proferisse meu primeiro choro, depois sorte durante a Resistência, o hospital (hepatite, tuberculose), Sabah, minha companheira e esposa. É verdade que "o impulso vital" não me deixou; até aumentou durante a crise global. Qualquer crise me estimula, e esta, enorme, me estimula enormemente.

*Publicado originalmente em 'Le Monde' | Tradução de Aluisio SchumacherNascido em 1921, ex-combatente da resistência, sociólogo e filósofo, pensador transdisciplinar e indisciplinado, doutor honoris causa de trinta e quatro universidades em todo o mundo, Edgar Morin está, desde 17 de março, confinado em seu apartamento em Montpellier com sua esposa, a socióloga Sabah Abouessalam.

É da rue Jean-Jacques Rousseau, onde reside, que o autor de La Voie (2011) e Terre-Patrie (1993), que publicou recentemente Les souvenirs viennent à ma rencontre (Fayard, 2019), um trabalho de mais de 700 páginas em que o intelectual se lembra profundamente das histórias, reuniões e "magnetizações" mais fortes de sua existência, redefine um novo contrato social, realiza algumas confissões e analisa uma crise global que "estimula enormemente”.

A pandemia devido a essa forma de coronavírus era previsível?
Todas as futurologias do século XX que previram o futuro ao transportar as correntes que atravessam o presente para o futuro entraram em colapso. No entanto, continuamos prevendo 2025 e 2050 enquanto somos incapazes de entender 2020. A experiência das irrupções do inesperado na história pouco penetrou nas consciências. Ora, o advento de um imprevisível era previsível, mas não sua natureza. Daí minha máxima permanente: "Espere o inesperado. "

Além disso, fui um dos poucos que previram desastres em cadeia causados pelo desencadeamento descontrolado da mundialização tecnoeconômica, incluindo os resultantes da degradação da biosfera e da degradação das sociedades. Mas eu não tinha previsto nenhum desastre viral.

Houve, no entanto, um profeta dessa catástrofe: Bill Gates, em uma conferência em abril de 2012, anunciando que o perigo imediato para a humanidade não era nuclear, mas sanitário. Ele havia visto na epidemia de Ebola, rapidamente controlada por acaso, o anúncio do perigo global de um possível vírus com alto poder de contaminação; e destacou as medidas de prevenção necessárias, incluindo equipamentos hospitalares adequados. Mas, apesar desse aviso público, nada foi feito nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar. Pois o conforto intelectual e o hábito têm horror das mensagens que os incomodam.

Como explicar a falta de preparação francesa?
Em muitos países, incluindo a França, a estratégia econômica just-in-time, substituindo a de armazenamento, deixou nosso sistema de saúde desprovido de máscaras, instrumentos de teste, aparelhos respiratórios; isso, juntamente com a doutrina liberal que comercializa o hospital e reduz seus recursos, contribuiu para o curso catastrófico da epidemia.

Em que tipo de imprevisto essa crise nos coloca?
Essa epidemia nos traz um festival de incertezas. Não temos certeza sobre a origem do vírus: mercado insalubre de Wuhan ou laboratório vizinho, ainda não sabemos acerca das mutações que sofre ou poderá sofrer o vírus durante sua propagação. Não sabemos quando a epidemia regredirá e se o vírus permanecerá endêmico. Não sabemos até quando e em que medida o confinamento nos fará sofrer impedimentos, restrições e racionamento. Não sabemos quais serão as consequências políticas, econômicas, nacionais e globais das restrições trazidas por confinamentos. Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, uma mistura dos dois: estamos caminhando para novas incertezas.

Essa crise global de saúde é uma crise de complexidade?
O conhecimento se multiplica exponencialmente, de repente, vai além da nossa capacidade de nos apropriarmos e, acima de tudo, lança o desafio da complexidade: como confrontar, selecionar, organizar adequadamente esse conhecimento, conectando-o e integrando incertezas. Para mim, isso revela mais uma vez as deficiências do modo de conhecimento que nos foi inculcado, que nos faz separar o que é inseparável e reduzir a um único elemento aquilo que forma um todo ao mesmo tempo uno e diverso. De fato, a revelação avassaladora das mudanças pelas quais estamos passando é que tudo o que parecia separado está ligado, pois uma catástrofe na saúde traz catastrofes em cadeia para tudo o que é humano.

É trágico que o pensamento disjuntivo e redutivo reine supremo em nossa civilização e detenha o controle na política e na economia. Essa deficiência formidável levou a erros de diagnóstico, prevenção e decisões aberrantes. Acrescento que a obsessão com a lucratividade entre nossos dominantes e dirigentes levou a economias culpadas, como em hospitais e no abandono da produção de máscaras na França. Na minha opinião, as deficiências no modo de pensar, combinadas ao domínio indiscutível de uma sede frenética por lucros, são responsáveis %u20B%u20Bpor inúmeros desastres humanos, incluindo aqueles que ocorrem desde fevereiro de 2020.

Tínhamos uma visão unitária da ciência. No entanto, multiplicam-se em seu interior debates epidemiológicos e controvérsias terapêuticas. A ciência biomédica se tornou um novo campo de batalha?

É mais do que legítimo que a ciência seja convocada pelas autoridades para combater a epidemia. No entanto, os cidadãos, inicialmente tranquilizados, sobretudo por ocasião do remédio do professor Raoult, descobrem em seguida posições diferentes e até contrárias. Cidadãos mais bem informados estão descobrindo que determinados grandes cientistas têm relações de interesse com a indústria farmacêutica, cujos lobbies são poderosos junto a ministérios e na mídia, capazes de inspirar campanhas para ridicularizar idéias em desconformidade [com as dominantes].

Lembremo-nos do professor Montagnier que, contra medalhões e mandarins da ciência, foi, com alguns outros, o descobridor do HIV, o vírus da Aids. Esta é uma oportunidade para entender que a ciência não é um repertório de verdades absolutas (ao contrário da religião), mas que suas teorias são biodegradáveis sob o efeito de novas descobertas. As teorias aceitas tendem a se tornar dogmáticas nas cúpulas acadêmicas, e são os que delas se desviam, de Pasteur a Einstein, passando por Darwin, e Crick e Watson, descobridores da dupla hélice do DNA, que fazem as ciências progredirem. É que controvérsias, longe de serem anomalias, são necessárias para esse progresso. Mais uma vez, no desconhecido, tudo progride por tentativa e erro, bem como por inovações desviantes inicialmente incompreendidas e rejeitadas. Esta é a aventura terapêutica contra vírus. Os remédios podem aparecer onde não eram esperados.

A ciência é devastada pela hiperespecialização, que é o fechamento e a compartimentalização do conhecimento especializado, em vez de sua comunicação. E são sobretudo pesquisadores independentes que estabeleceram desde o início da epidemia uma cooperação, que agora se amplia entre infectologistas e médicos em todo o mundo. A ciência vive da comunicação, toda censura a bloqueia. Portanto, devemos ver a grandeza da ciência contemporânea ao mesmo tempo que suas fraquezas.

Como podemos tirar proveito da crise?
Em meu ensaio Sur la crise (Flammarion), tentei mostrar que uma crise, além da desestabilização e da incerteza que traz, se manifesta pelo fracasso das regulações de um sistema que, para manter sua estabilidade, inibe ou repele desvios (feedback negativo). Deixando de ser reprimidos, esses desvios (feedback positivo) tornam-se tendências ativas que, se se desenvolverem, ameaçam cada vez mais perturbar e bloquear o sistema em crise. Nos sistemas vivos e especialmente sociais, o desenvolvimento vitorioso de desvios que se tornaram tendências levará a transformações, regressivas ou progressivas, até mesmo a uma revolução.

A crise em uma sociedade gera dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade na busca de novas soluções. O segundo é a busca de um retorno à estabilidade passada ou a adesão a uma salvação providencial, bem como a denúncia ou imolação de um culpado. Esse culpado pode ter cometido os erros que causaram a crise, ou pode ser um culpado imaginário, bode expiatório que deve ser eliminado.Nascido em 1921, ex-combatente da resistência, sociólogo e filósofo, pensador transdisciplinar e indisciplinado, doutor honoris causa de trinta e quatro universidades em todo o mundo, Edgar Morin está, desde 17 de março, confinado em seu apartamento em Montpellier com sua esposa, a socióloga Sabah Abouessalam.

É da rue Jean-Jacques Rousseau, onde reside, que o autor de La Voie (2011) e Terre-Patrie (1993), que publicou recentemente Les souvenirs viennent à ma rencontre (Fayard, 2019), um trabalho de mais de 700 páginas em que o intelectual se lembra profundamente das histórias, reuniões e "magnetizações" mais fortes de sua existência, redefine um novo contrato social, realiza algumas confissões e analisa uma crise global que "estimula enormemente”.

A pandemia devido a essa forma de coronavírus era previsível?
Todas as futurologias do século XX que previram o futuro ao transportar as correntes que atravessam o presente para o futuro entraram em colapso. No entanto, continuamos prevendo 2025 e 2050 enquanto somos incapazes de entender 2020. A experiência das irrupções do inesperado na história pouco penetrou nas consciências. Ora, o advento de um imprevisível era previsível, mas não sua natureza. Daí minha máxima permanente: "Espere o inesperado. "

Além disso, fui um dos poucos que previram desastres em cadeia causados pelo desencadeamento descontrolado da mundialização tecnoeconômica, incluindo os resultantes da degradação da biosfera e da degradação das sociedades. Mas eu não tinha previsto nenhum desastre viral.

Houve, no entanto, um profeta dessa catástrofe: Bill Gates, em uma conferência em abril de 2012, anunciando que o perigo imediato para a humanidade não era nuclear, mas sanitário. Ele havia visto na epidemia de Ebola, rapidamente controlada por acaso, o anúncio do perigo global de um possível vírus com alto poder de contaminação; e destacou as medidas de prevenção necessárias, incluindo equipamentos hospitalares adequados. Mas, apesar desse aviso público, nada foi feito nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar. Pois o conforto intelectual e o hábito têm horror das mensagens que os incomodam.

Como explicar a falta de preparação francesa?
Em muitos países, incluindo a França, a estratégia econômica just-in-time, substituindo a de armazenamento, deixou nosso sistema de saúde desprovido de máscaras, instrumentos de teste, aparelhos respiratórios; isso, juntamente com a doutrina liberal que comercializa o hospital e reduz seus recursos, contribuiu para o curso catastrófico da epidemia.

Em que tipo de imprevisto essa crise nos coloca?
Essa epidemia nos traz um festival de incertezas. Não temos certeza sobre a origem do vírus: mercado insalubre de Wuhan ou laboratório vizinho, ainda não sabemos acerca das mutações que sofre ou poderá sofrer o vírus durante sua propagação. Não sabemos quando a epidemia regredirá e se o vírus permanecerá endêmico. Não sabemos até quando e em que medida o confinamento nos fará sofrer impedimentos, restrições e racionamento. Não sabemos quais serão as consequências políticas, econômicas, nacionais e globais das restrições trazidas por confinamentos. Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, uma mistura dos dois: estamos caminhando para novas incertezas.

Essa crise global de saúde é uma crise de complexidade?
O conhecimento se multiplica exponencialmente, de repente, vai além da nossa capacidade de nos apropriarmos e, acima de tudo, lança o desafio da complexidade: como confrontar, selecionar, organizar adequadamente esse conhecimento, conectando-o e integrando incertezas. Para mim, isso revela mais uma vez as deficiências do modo de conhecimento que nos foi inculcado, que nos faz separar o que é inseparável e reduzir a um único elemento aquilo que forma um todo ao mesmo tempo uno e diverso. De fato, a revelação avassaladora das mudanças pelas quais estamos passando é que tudo o que parecia separado está ligado, pois uma catástrofe na saúde traz catastrofes em cadeia para tudo o que é humano.

É trágico que o pensamento disjuntivo e redutivo reine supremo em nossa civilização e detenha o controle na política e na economia. Essa deficiência formidável levou a erros de diagnóstico, prevenção e decisões aberrantes. Acrescento que a obsessão com a lucratividade entre nossos dominantes e dirigentes levou a economias culpadas, como em hospitais e no abandono da produção de máscaras na França. Na minha opinião, as deficiências no modo de pensar, combinadas ao domínio indiscutível de uma sede frenética por lucros, são responsáveis %u20B%u20Bpor inúmeros desastres humanos, incluindo aqueles que ocorrem desde fevereiro de 2020.

Tínhamos uma visão unitária da ciência. No entanto, multiplicam-se em seu interior debates epidemiológicos e controvérsias terapêuticas. A ciência biomédica se tornou um novo campo de batalha?

É mais do que legítimo que a ciência seja convocada pelas autoridades para combater a epidemia. No entanto, os cidadãos, inicialmente tranquilizados, sobretudo por ocasião do remédio do professor Raoult, descobrem em seguida posições diferentes e até contrárias. Cidadãos mais bem informados estão descobrindo que determinados grandes cientistas têm relações de interesse com a indústria farmacêutica, cujos lobbies são poderosos junto a ministérios e na mídia, capazes de inspirar campanhas para ridicularizar idéias em desconformidade [com as dominantes].

Lembremo-nos do professor Montagnier que, contra medalhões e mandarins da ciência, foi, com alguns outros, o descobridor do HIV, o vírus da Aids. Esta é uma oportunidade para entender que a ciência não é um repertório de verdades absolutas (ao contrário da religião), mas que suas teorias são biodegradáveis sob o efeito de novas descobertas. As teorias aceitas tendem a se tornar dogmáticas nas cúpulas acadêmicas, e são os que delas se desviam, de Pasteur a Einstein, passando por Darwin, e Crick e Watson, descobridores da dupla hélice do DNA, que fazem as ciências progredirem. É que controvérsias, longe de serem anomalias, são necessárias para esse progresso. Mais uma vez, no desconhecido, tudo progride por tentativa e erro, bem como por inovações desviantes inicialmente incompreendidas e rejeitadas. Esta é a aventura terapêutica contra vírus. Os remédios podem aparecer onde não eram esperados.

A ciência é devastada pela hiperespecialização, que é o fechamento e a compartimentalização do conhecimento especializado, em vez de sua comunicação. E são sobretudo pesquisadores independentes que estabeleceram desde o início da epidemia uma cooperação, que agora se amplia entre infectologistas e médicos em todo o mundo. A ciência vive da comunicação, toda censura a bloqueia. Portanto, devemos ver a grandeza da ciência contemporânea ao mesmo tempo que suas fraquezas.

Como podemos tirar proveito da crise?
Em meu ensaio Sur la crise (Flammarion), tentei mostrar que uma crise, além da desestabilização e da incerteza que traz, se manifesta pelo fracasso das regulações de um sistema que, para manter sua estabilidade, inibe ou repele desvios (feedback negativo). Deixando de ser reprimidos, esses desvios (feedback positivo) tornam-se tendências ativas que, se se desenvolverem, ameaçam cada vez mais perturbar e bloquear o sistema em crise. Nos sistemas vivos e especialmente sociais, o desenvolvimento vitorioso de desvios que se tornaram tendências levará a transformações, regressivas ou progressivas, até mesmo a uma revolução.

A crise em uma sociedade gera dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade na busca de novas soluções. O segundo é a busca de um retorno à estabilidade passada ou a adesão a uma salvação providencial, bem como a denúncia ou imolação de um culpado. Esse culpado pode ter cometido os erros que causaram a crise, ou pode ser um culpado imaginário, bode expiatório que deve ser eliminado.Parte superior do formulário
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Protocolos sobre educação inclusiva durante a pandemia - Webnário

Instituto Rodrigo Mendes

Webinário
Protocolos sobre educação inclusiva durante a pandemia


No próximo dia 3 de julho, às 11h (Brasília), o Instituo Rodrigo Mendes realizará um webinário, com apoio do Todos Pela Educação, para apresentar uma pesquisa que realizamos referente à educação inclusiva durante o período de isolamento social e a fase de reabertura das escolas.

#PraCegoVer #PraTodosVerem: Webinário | 03/07 - 11h Protocolos sobre educação inclusiva na pandemia. Um sobrevoo por 23 países e organismos internacionais. Fotografia: Quatro estudantes, que utilizam mascaras de proteção, estão sentados em carteiras alternadas em uma sala de aula. Iconografia indica que o evento vai contar com Audiodescrição, Libras e legendas em tempo real. Logotipos: realização Instituto Rodrigo Mendes e apoio Todos pela Educação. Fim da descrição.


O estudo fornece orientações para auxiliar os gestores responsáveis no planejamento e na execução de políticas públicas, buscando assegurar o direito à educação das pessoas com deficiência diante do período de isolamento social e no estágio de retomada das atividades escolares de forma presencial, abordando os critérios de retorno; questões sanitárias; e distanciamento social. A pesquisa adotou como fonte de informações uma rede de 45 especialistas estrangeiros, protocolos de diversos países, bem como outros documentos de organismos internacionais, relacionados à educação.

O superintendente do IRM, Rodrigo Hübner Mendes, vai apresentar a pesquisa e os participantes vão dar seu parecer. Para tanto, representantes das seguintes organizações foram convidados: Todos Pela Educação (TPE), Conselho Nacional de Educação (CNE), Conselho Nacional de Secretários da Educação (CONSED) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME).


A transmissão ocorrerá pelo Facebook e pelo canal do YouTube do IRM e contará com recursos de acessibilidade, como Libras, legenda em tempo real e audiodescrição.

Educação: Brasil cai para última posição em ranking global

No Anuário de Competitividade Mundial 2020 (World Competitiveness Yearbook – WCY - Clique aqui para ter acesso ao Relatório na Íntegra), o Brasil está em último lugar no fator educação. A posição do país é a de 63, duas abaixo de 2019. 



Para o professor da Fundação Dom Cabral (FDC) e coordenador do estudo, Carlos Arruda, a postura liberal do governo de Jair Bolsonaro mostrou que, se por um lado a redução do papel do Estado na economia gerou eficiência, por outro deixou clara a necessidade de maior atuação na esfera da educação. “O ponto crítico desta edição é educação, um elemento transformador, que deve ser tratado como prioritário e não secundário”, disse.

Embora a representatividade dos gastos em educação em relação ao Produto Interno Bruto, de 6%, seja equiparável a países ricos, os gastos públicos totais por estudante, de US$ 2.165 por aqui, estão muito abaixo da média geral, de US$ 6.363, além do que no ensino superior apenas 19,6% da população brasileira de 25 a 34 anos chega a esse nível de ensino contra a média mundial de 42,8%.

Competitividade mundial
Por outro lado, o Brasil avançou três posições no tradicional ranking de competitividade mundial publicado pelo IMD (International Institute for Management Development), em parceria com a Fundação Dom Cabral (FDC). 

No anuário, a posição do Brasil passou a ser a de 56 entre 63 nações no ranking de competitividade, mais pela piora de outros concorrentes do que por avanços estruturais.

As reformas econômicas mostraram resultado e o clima era de otimismo entre o empresariado antes da pandemia da Covid-19 – a pesquisa inclui indicadores de opinião, coletados no primeiro trimestre deste ano.

O estudo aponta que esse avanço “é irrisório”, pois mesmo que retornasse à posição de dez anos atrás (55ª) ainda estaria muito longe do ideal, permanecendo entre os países menos competitivos do mundo em eficiência do governo. Singapura segue no topo do ranking nesta edição, seguida por Dinamarca e Suíça, posições antes ocupadas por Hong Kong e Estados Unidos.


Fonte: https://noticiasconcursos.com.br/educacao/educacao-brasil-cai-para-ultima-posicao-em-ranking-global/