quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Depoimento - Sobre a escola especial ou escola inclusiva... por Carol Macalini (pessoa cega)

Depoimento

Fui para escola regular com 5 anos. No primeiro dia de aula, todas as crianças brincaram comigo pois acharam muito legal ter uma colega diferente na sala de aula. No segundo dia de aula, eu fui excluída, pois alguém espalhou o boato de que minha deficiência era contagiosa. Na primeira série, apanhei de uma menina maior, pois na opinião dela eu recebia muita atenção das professoras. Na segunda série, eu tive uma professora que, na falta de recursos melhores, contornava desenhos com grãos de arroz e feijão para que eu nunca ficasse de fora de nenhuma atividade que ela planejava para a turma. Na terceira série, eu tive uma professora desequilibrada que surtava por qualquer coisa e um dia rasgou meu livro em Braille por não saber ler. Nesse mesmo ano, um colega me trouxe um ninho de passarinho pois eu havia comentado que queria saber como era um, outro colega construiu um prédio de palitos de madeira para que eu visse com as mãos como funcionavam os andares, uma professora dançou quadrilha comigo quando o aluno que seria meu par se recusou. Ela era de uma religião que não permitia isso, mas fez por mim. Uma professora gravava histórias em fitas para eu escutar em casa enquanto os outros levavam os livros normais, uma colega aprendeu Braille para me ajudar nas atividades.

Tantas e tantas coisas para listar, e o que eu quero com tudo isso é dizer que sair da proteção da nossa casa é doloroso, assim como com certeza é para todas as crianças, e vai sendo cada vez mais conforme vamos crescendo e entendendo que a vida é esse misto de alegrias e tristezas.

Não é segregando que se inclui, não é escondendo que se protege, o mundo lá fora é cheio de obstáculos e a escola serve para nos preparar para eles no futuro.

[02:27, 30/10/2020] Windyz Ferreira: Claro que algumas coisas eu não precisaria ter vivido, algumas dores poderiam ter sido poupadas, mas esse processo todo me construiu e me tornou o que eu sou hoje.

Acredito, sim, que precise existir uma reforma educacional, mas isso deve acontecer na formação de professores e não na exclusão de alunos deficientes, isso é retroceder, é cuspir em cima de anos e anos de luta, é invalidar o trabalho e uma vida de tantos que se empenharam em nos fazer ser visíveis. É importante para a pessoa deficiente ter um convívio social, é importante para as pessoas sem deficiência conviver com o diferente, só assim vai acontecer uma verdadeira aceitação e inclusão.

A falta de materiais, de professor qualificado, de escolas sem adaptação no espaço físico, tudo isso precisa ser combatido com veemência e eu compactuo com essa luta, eu fiz parte dela e continuarei fazendo enquanto eu estudar. Na passagem que tive pela vida de todos os meus professores e colegas, tenho certeza que deixei algo, talvez nem sempre positivo, mas todos devem lembrar que tiveram uma colega cega, uma aluna cega, e independente da opinião pessoal de cada um sobre a minha pessoa eu estive lá, eu fui a diferença na multidão, eu posso ter sido a pedra no sapato de alguém, mas posso ter ensinado outros tantos, não por eu ser alguém especial, mas por eu ser diferente, coisa que não teria acontecido caso eu tivesse estudado em uma escola só de pessoas cegas com professores que trabalham apenas com cegos.

Tiveram momentos ruins sim, mas tiveram momentos bons, felizes, gratificantes e enriquecedores para mim e para quem viveu comigo. Escola especial é exclusão, escola regular é inclusão, possibilidades, que a nossa voz seja ouvida, e que o nada sobre nós sem nós seja respeitado.

Visão Essa medida torna imperativa as alterações, mas não justifica sua revogação. profa. Erenice Carvalho (Facebook 30/10)

Duas informações recentes chamaram nossa atenção, ao relacionar Ministério Público e políticas nacionais de educação especial no Brasil. São elas:

1. “Defensorias públicas ingressam no STF contra nova política de educação especial.” (Revista Consultor Jurídico, 26/10/2020).

2. “Análise do Decreto nº 10.502/2020, de 30 de setembro de 2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial” (Nota Técnica AMPID Nº 01/2020).

Sobre essas publicações, cabe retomar fatos que remontam ao início dos anos 2000. A saber:

Em 2004, foi publicada e divulgada, nacionalmente, a cartilha editada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, intitulada “O Acesso de Alunos com Deficiência às Escolas e Classes Comuns da Rede Regular”, tendo como primeira autora Eugênia Augusta Gonzaga Fávero (procuradora da República), Luisa de Marillac P. Pantoja  (membro do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios) e Maria Teresa Eglér Mantoan (pedagoga, professora universitária).

O conteúdo da cartilha versa sobre aspectos jurídicos e orientações pedagógicas direcionadas aos sistemas e redes de ensino, públicos e particulares, abordando temas como: inclusão escolar; organização pedagógica das escolas; ensino em sala de aula; práticas de ensino; atividades e processos pedagógicos; avaliação, etc. Todos os conteúdos convergem para a emergência da educação inclusiva no Brasil, recomendando a extinção de escolas especializadas, cuja destinação foi vista (equivocadamente) como limitada à oferta de atendimento educacional especializado.

Segundo essa interpretação, as referidas instituições não tinham identidade de escola, a despeito de sua regularização nas respectivas secretarias de educação. Assim sendo, deveriam “providenciar imediatamente a matrícula das pessoas que atende [...] em escolas comuns da rede regular.” (p. 15). E ainda: “O sistema oficial de ensino, por meio de seus órgãos [...] deve dar às escolas especiais prazo para que adotem as providências necessárias [...]. (p. 15). No restante do texto, as autoras prosseguem definindo novos fazeres (atendimento clínico e atendimento educacional especializado) para as organizações não governamentais.

Em seguida, as autoras relacionam vários requisitos e diretrizes para o atendimento escolar das pessoas com deficiência, devidamente categorizadas por tipo de impedimento funcional. No que tange às orientações pedagógicas, seguem elencados alguns destaques:

· Garantia de atendimento educacional especializado, preferencialmente na própria escola comum da rede regular de ensino. (p. 34).

· Medida restritiva: “Nenhum aluno é encaminhado a salas de reforço ou aprende a partir de currículos adaptados.” (p. 34). Nesse ponto, entendemos que a diferenciação de ensino está descartada, mesmo para estudantes que necessitam de apoios individualizados, intensos e contínuos.

· Direcionamento teórico único: “É o aluno que se adapta ao novo conhecimento e só ele é capaz de regular o seu processo de construção intelectual.” [...] cabe ao educando individualizar sua aprendizagem.” (p. 34). Encaramos, a partir dessa afirmação, que o papel do professor como mediador da aprendizagem e sua atuação e intencionalidade nos processos de ensino-aprendizagem perdem lugar. Autonomia questionável, para discentes com graves comprometimentos funcionais.

· Direcionamento metodológico: “A inclusão não prevê a utilização de práticas de ensino escolar específicas para esta ou aquela deficiência [...]” (p. 35). Essa afirmativa aponta para um ensino de caráter universalizante, minimizando o impacto das diferenças na escola e da escola nas diferenças.

Ao se referir ao estudante “com graves comprometimentos”, o texto expressa:

Um aluno com grandes limitações provavelmente não vai aprender tudo o que outros colegas poderão assimilar durante o processo educativo escolar, mas ele vai se beneficiar da convivência social e pode se beneficiar também, a seu modo e segundo suas possibilidades intelectuais, dos conteúdos curriculares trabalhados na sua sala de aula.” (p. 46).

A aprendizagem é pouco enfatizada nessa citação, em favor da socialização. Pode-se considerar ainda, as poucas perspectivas acadêmicas para o estudante, quanto mais avançada a complexidade dos conteúdos curriculares, ainda mais que se preconiza que a aula seja dada para “ensinar a turma toda” (p. 36-42).

Em 2008, o MEC lançou, oficiosamente, a “Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva”, tendo como pedra angular os ditames da cartilha produzida pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. A leitura cuidadosa dos textos demonstra o alinhamento entre suas ideias. Fica a indagação: que nível de participação social envolveu a elaboração de ambos? Quantas pessoas com deficiência, altas habilidades/superdotação e com transtorno do espectro autistas (público a quem se destina a política); familiares; professores (inclusive da educação básica); gestores; técnicos em educação; pesquisadores; organizações da sociedade civil, entre outros, foram ouvidos e compartilharam a formulação da referida  Política?

Retornando ao início deste texto, quanto às duas publicações trazidas para reflexão, verificamos a convergência entre elas, a cartilha produzida pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a Política de 2008. Em discurso uníssono, recomendam a supressão das escolas e classes especializadas.

A Nota Técnica AMPID Nº 01/2020, afirma que o Decreto nº 10.502/2020 “[...] nega o reconhecimento do direito da pessoa com deficiência a viver em comunidade, dela participar e desfrutar dessa convivência; [...] retrocede em direitos da pessoa com deficiência a uma escola inclusiva, direito fundamental há muito conquistado.”

Ocorre que não há consenso nesse particular, porque parte da sociedade brasileira que aprova, estimula e luta pela educação inclusiva, reconhece que a inclusão de todos os estudantes na classe comum requer melhor desenvolvimento dos sistemas educacionais, principalmente, para situações específicas de graves e múltiplos comprometimentos funcionais, restrição calcada em avaliação biopsicossocial envolvendo a família. Espaços que favoreçam a aprendizagem, o desenvolvimento e a participação desses estudantes e seu melhor interesse precisam ainda ser investigados cientificamente.

Por outro lado, existe a procura de parte da população pelas escolas especializadas, segundo dados recentes do censo escolar. Sejam egressos da escola comum, seja matrícula inicial com indicação para ambiente especializado com apoios significativos. A própria sociedade é a medida, uma vez que a minoria demandante está refletida nas curvas dos gráficos e reduz-se cada vez mais a demanda para um grupo minoritário e mais seletivo.

Esse público tem sido pouco contemplado nas discussões sobre educação inclusiva. Mantém-se praticamente invisível, devido ao seu apagamento nas políticas públicas e ao incipiente número de pesquisas científicas, dentro e fora do Brasil, verificado nas revisões de literatura disponíveis dos últimos 10 anos. Na ausência de evidências científicas, vêm predominando as evidências empíricas, no cotidiano das redes de ensino e na insegurança das famílias acerca da efetividade da inclusão escolar.

Pode-se depreender, das observações levantadas aqui, que o Ministério Público vem encaminhando historicamente a questão das escolas e classes especializadas com base, principalmente, em interpretações do ordenamento jurídico e no juízo moral e normativo, com poucas fontes decorrentes de pesquisas educacionais, depoimentos de pessoas atendidas pela Educação Especial, de educadores atuantes na prática pedagógica e das famílias.

Em 2020, foi lançado o Decreto nº 10.502/2020, que se encontra em vigoroso sob fogo cruzado pelos defensores da política de 2008, principalmente por trazer o registro das escolas e classes especializadas, públicas e privadas, que nunca deixaram de existir, apesar de apagadas na política anterior. A despeito de muitos equívocos, que requerem ajustes e regulamentações, o texto do Decreto nº 10.502/2020 traz avanços como: põe em evidência as singularidades dos estudantes e seu protagonismo; situa a intencionalidade do processos de ensino-aprendizagem; evidencia as demandas e ofertas de apoios individualizados para os estudantes que necessitam; resgata o protagonismo das famílias; abre espaço para o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas; alarga os espaços de aprendizagem para os estudantes, face às diversidades da população estudantil; posiciona o estudante como centro do processo educativo, dando-lhe visibilidade, dentre outros aspectos a serem considerados em análise mais aprofundada.

As fontes para formulação da política de 2020 incluiu reuniões, consulta pública, audiências públicas, pesquisas, visitas, escutas, consultorias e outras formas de participação, organizados em um texto formulado pelo MEC, em 2018. Houve grande equívoco, no entanto, no lançamento da política: reduções, supressões e modificações da versão original para adequar-se ao Decreto, resultando em dúvidas e questionamentos sobre seu conteúdo. Essa medida torna imperativa as alterações, mas não justifica sua revogação.