Duas informações recentes chamaram nossa atenção, ao relacionar Ministério Público e políticas nacionais de educação especial no Brasil. São elas:
1. “Defensorias públicas ingressam no STF contra nova política de educação especial.” (Revista Consultor Jurídico, 26/10/2020).
2. “Análise do Decreto nº 10.502/2020, de 30 de setembro de 2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial” (Nota Técnica AMPID Nº 01/2020).
Sobre essas publicações, cabe retomar fatos que remontam ao início dos anos 2000. A saber:
Em 2004, foi publicada e divulgada, nacionalmente, a cartilha editada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, intitulada “O Acesso de Alunos com Deficiência às Escolas e Classes Comuns da Rede Regular”, tendo como primeira autora Eugênia Augusta Gonzaga Fávero (procuradora da República), Luisa de Marillac P. Pantoja (membro do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios) e Maria Teresa Eglér Mantoan (pedagoga, professora universitária).
O conteúdo da cartilha versa sobre aspectos jurídicos e orientações pedagógicas direcionadas aos sistemas e redes de ensino, públicos e particulares, abordando temas como: inclusão escolar; organização pedagógica das escolas; ensino em sala de aula; práticas de ensino; atividades e processos pedagógicos; avaliação, etc. Todos os conteúdos convergem para a emergência da educação inclusiva no Brasil, recomendando a extinção de escolas especializadas, cuja destinação foi vista (equivocadamente) como limitada à oferta de atendimento educacional especializado.
Segundo essa interpretação, as referidas instituições não tinham identidade de escola, a despeito de sua regularização nas respectivas secretarias de educação. Assim sendo, deveriam “providenciar imediatamente a matrícula das pessoas que atende [...] em escolas comuns da rede regular.” (p. 15). E ainda: “O sistema oficial de ensino, por meio de seus órgãos [...] deve dar às escolas especiais prazo para que adotem as providências necessárias [...]. (p. 15). No restante do texto, as autoras prosseguem definindo novos fazeres (atendimento clínico e atendimento educacional especializado) para as organizações não governamentais.
Em seguida, as autoras relacionam vários requisitos e diretrizes para o atendimento escolar das pessoas com deficiência, devidamente categorizadas por tipo de impedimento funcional. No que tange às orientações pedagógicas, seguem elencados alguns destaques:
· Garantia de atendimento educacional especializado, preferencialmente na própria escola comum da rede regular de ensino. (p. 34).
· Medida restritiva: “Nenhum aluno é encaminhado a salas de reforço ou aprende a partir de currículos adaptados.” (p. 34). Nesse ponto, entendemos que a diferenciação de ensino está descartada, mesmo para estudantes que necessitam de apoios individualizados, intensos e contínuos.
· Direcionamento teórico único: “É o aluno que se adapta ao novo conhecimento e só ele é capaz de regular o seu processo de construção intelectual.” [...] cabe ao educando individualizar sua aprendizagem.” (p. 34). Encaramos, a partir dessa afirmação, que o papel do professor como mediador da aprendizagem e sua atuação e intencionalidade nos processos de ensino-aprendizagem perdem lugar. Autonomia questionável, para discentes com graves comprometimentos funcionais.
· Direcionamento metodológico: “A inclusão não prevê a utilização de práticas de ensino escolar específicas para esta ou aquela deficiência [...]” (p. 35). Essa afirmativa aponta para um ensino de caráter universalizante, minimizando o impacto das diferenças na escola e da escola nas diferenças.
Ao se referir ao estudante “com graves comprometimentos”, o texto expressa:
Um aluno com grandes limitações provavelmente não vai aprender tudo o que outros colegas poderão assimilar durante o processo educativo escolar, mas ele vai se beneficiar da convivência social e pode se beneficiar também, a seu modo e segundo suas possibilidades intelectuais, dos conteúdos curriculares trabalhados na sua sala de aula.” (p. 46).
A aprendizagem é pouco enfatizada nessa citação, em favor da socialização. Pode-se considerar ainda, as poucas perspectivas acadêmicas para o estudante, quanto mais avançada a complexidade dos conteúdos curriculares, ainda mais que se preconiza que a aula seja dada para “ensinar a turma toda” (p. 36-42).
Em 2008, o MEC lançou, oficiosamente, a “Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva”, tendo como pedra angular os ditames da cartilha produzida pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. A leitura cuidadosa dos textos demonstra o alinhamento entre suas ideias. Fica a indagação: que nível de participação social envolveu a elaboração de ambos? Quantas pessoas com deficiência, altas habilidades/superdotação e com transtorno do espectro autistas (público a quem se destina a política); familiares; professores (inclusive da educação básica); gestores; técnicos em educação; pesquisadores; organizações da sociedade civil, entre outros, foram ouvidos e compartilharam a formulação da referida Política?
Retornando ao início deste texto, quanto às duas publicações trazidas para reflexão, verificamos a convergência entre elas, a cartilha produzida pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a Política de 2008. Em discurso uníssono, recomendam a supressão das escolas e classes especializadas.
A Nota Técnica AMPID Nº 01/2020, afirma que o Decreto nº 10.502/2020 “[...] nega o reconhecimento do direito da pessoa com deficiência a viver em comunidade, dela participar e desfrutar dessa convivência; [...] retrocede em direitos da pessoa com deficiência a uma escola inclusiva, direito fundamental há muito conquistado.”
Ocorre que não há consenso nesse particular, porque parte da sociedade brasileira que aprova, estimula e luta pela educação inclusiva, reconhece que a inclusão de todos os estudantes na classe comum requer melhor desenvolvimento dos sistemas educacionais, principalmente, para situações específicas de graves e múltiplos comprometimentos funcionais, restrição calcada em avaliação biopsicossocial envolvendo a família. Espaços que favoreçam a aprendizagem, o desenvolvimento e a participação desses estudantes e seu melhor interesse precisam ainda ser investigados cientificamente.
Por outro lado, existe a procura de parte da população pelas escolas especializadas, segundo dados recentes do censo escolar. Sejam egressos da escola comum, seja matrícula inicial com indicação para ambiente especializado com apoios significativos. A própria sociedade é a medida, uma vez que a minoria demandante está refletida nas curvas dos gráficos e reduz-se cada vez mais a demanda para um grupo minoritário e mais seletivo.
Esse público tem sido pouco contemplado nas discussões sobre educação inclusiva. Mantém-se praticamente invisível, devido ao seu apagamento nas políticas públicas e ao incipiente número de pesquisas científicas, dentro e fora do Brasil, verificado nas revisões de literatura disponíveis dos últimos 10 anos. Na ausência de evidências científicas, vêm predominando as evidências empíricas, no cotidiano das redes de ensino e na insegurança das famílias acerca da efetividade da inclusão escolar.
Pode-se depreender, das observações levantadas aqui, que o Ministério Público vem encaminhando historicamente a questão das escolas e classes especializadas com base, principalmente, em interpretações do ordenamento jurídico e no juízo moral e normativo, com poucas fontes decorrentes de pesquisas educacionais, depoimentos de pessoas atendidas pela Educação Especial, de educadores atuantes na prática pedagógica e das famílias.
Em 2020, foi lançado o Decreto nº 10.502/2020, que se encontra em vigoroso sob fogo cruzado pelos defensores da política de 2008, principalmente por trazer o registro das escolas e classes especializadas, públicas e privadas, que nunca deixaram de existir, apesar de apagadas na política anterior. A despeito de muitos equívocos, que requerem ajustes e regulamentações, o texto do Decreto nº 10.502/2020 traz avanços como: põe em evidência as singularidades dos estudantes e seu protagonismo; situa a intencionalidade do processos de ensino-aprendizagem; evidencia as demandas e ofertas de apoios individualizados para os estudantes que necessitam; resgata o protagonismo das famílias; abre espaço para o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas; alarga os espaços de aprendizagem para os estudantes, face às diversidades da população estudantil; posiciona o estudante como centro do processo educativo, dando-lhe visibilidade, dentre outros aspectos a serem considerados em análise mais aprofundada.
As fontes para formulação da política de 2020 incluiu reuniões, consulta pública, audiências públicas, pesquisas, visitas, escutas, consultorias e outras formas de participação, organizados em um texto formulado pelo MEC, em 2018. Houve grande equívoco, no entanto, no lançamento da política: reduções, supressões e modificações da versão original para adequar-se ao Decreto, resultando em dúvidas e questionamentos sobre seu conteúdo. Essa medida torna imperativa as alterações, mas não justifica sua revogação.