Nota de Repúdio ao Decreto nº 10.502, de 30 de
setembro de 2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial
A comunidade científica vinculada à Associação
Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), ao Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e
Inclusão da Pessoa com Deficiência, ao Observatório de Educação Especial e
Inclusão Educacional (ObEE) e ao AcolheDown, vem por meio desta nota se
posicionar quanto ao teor do Decreto Nº. 10.502, de 30 de setembro de 2020, que
institui a nova política nacional de educação especial.
Pontuamos, inicialmente, alguns preceitos da
Constituição Brasileira (1988): o art. 1º descreve entre os fundamentos da
República Federativa do Brasil, a cidadania e a dignidade da pessoa humana; o
art. 2º aponta como um dos seus objetivos fundamentais (item IV), “promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e quaisquer outras
formas de discriminação”, o que abarca as diferentes deficiências, e o art. 6º
indica que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados […]
(CF, 1988). O Decreto n. 10.502, publicado em 30 de setembro de 2020, fere os
artigos constitucionais mencionados, visto que possibilita a segregação de
pessoas com deficiência, sob a velha justificativa da inclusão de “pessoas
especiais” em “ambientes especializados” e da autonomia das mães e pais de
pessoas com deficiência em decidirem sobre aquilo que pensam ser o melhor para
seus filhos, inclusive sobre a educação.
Ao promulgar o Decreto Legislativo no 186, de 9 de
julho de 2008 e o Decreto nº 6.949, de 25 de Agosto de 2009, tornando o Brasil
signatário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que em
seu art. 24 defende a inclusão incondicional, o Estado brasileiro assumiu o
compromisso de assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os
níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida. A Lei Brasileira de
Inclusão (LBI), criada sob sua referência, determina que incumbe ao poder
público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, um sistema
educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado
ao longo de toda a vida; e o aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a
garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por
meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as
barreiras e promovam a inclusão plena (BRASIL, 2015, Art. 28). A presente
política, instituída pelo Decreto nº 10502/2020, viola um direito humano da
pessoa com deficiência assegurado constitucionalmente, quando viabiliza e
legitima formatos educacionais na contramão das práticas inclusivas,
corroborando para a segregação de tais sujeitos. Ao localizar no pressuposto da
inclusão ou na “insuficiência da escola” a justificativa para não garantir o
direito à convivência entre as diferenças, o presente decreto estigmatiza,
exclui e segrega as pessoas com deficiência.
A defesa da dignidade e da equidade implica o
reconhecimento da deficiência como parte da experiência humana e da
demonstração de que o acesso às políticas e serviços em igualdade de condições
com as demais pessoas são valores a serem afirmados. A Educação Inclusiva tem
como pressuposto a desconstrução das práticas de segregação as quais pessoas
com deficiência foram historicamente submetidas. Ela requer investimentos de
diversas ordens, incluindo a formação continuada dos profissionais de educação,
a contratação permanente de profissionais de apoio e a garantia de recursos
pedagógicos em quantidade e variedade, capazes de atender às diferentes
necessidades educacionais de cada aluno. Ademais, é indispensável a garantia de
uma rede de atenção interdisciplinar e intersetorial que promova a articulação
necessária ao atendimento integral às pessoas com deficiência, o que inclui o
acesso às diferentes políticas públicas e direitos sociais.
Na Educação Inclusiva não se deseja ou espera a
separação entre sujeitos ou grupos, ao contrário, compreende-se que todas as
pessoas têm a possibilidade de acessar e participar de um modelo de educação em
comum, verdadeiramente emancipatório e igualitário, sem que seja negada a
convivência cotidiana entre as pessoas com e sem deficiência na mesma escola e
sala de aula, garantindo acesso ao atendimento educacional especializado e,
consequentemente, aos recursos e tecnologias capazes de potencializar o processo
de ensino e aprendizagem, quando necessário e pertinente, atendendo às
singularidades de cada aluno. As perspectivas que a antecedem eram pautadas em
lógicas de correção e de normalização de seus corpos e funções, contexto em que
possibilidades de reconhecimento das diferenças como valor eram negadas. O
Decreto nº 10502/2020 é considerado um retrocesso por retomar tais perspectivas
há décadas superadas nos estudos sobre educação e na legislação internacional
que a ampara, incluindo os tratados internacionais dos quais o país é
signatário.
Em muitas oportunidades, governos deixam de
implementar políticas de Estado que se fazem sentir na vida das pessoas, mas o
presente decreto ao invés de contribuir no aperfeiçoamento de um marco legal,
por um lado desconstrói os avanços obtidos, e, por outro, induz a sociedade a
caminhar em direção a negação dos direitos postulando o segregacionismo. A
escola, enquanto espaço plural e democrático, requer também investimentos na
esfera da vida social e na superação de interesses puramente mercadológicos,
que por um lado tendem a apoiar os desmontes no investimento público em
educação e, por outro, atender a um nicho de interesses na superespecialização
que é pautado em lógicas capacitistas, ou seja, que consideram a deficiência
como déficit e incapacidade. Neste sentido, o referido Decreto compõe o cenário
de esfacelamento do legado dos direitos atualmente vivenciado no Brasil que se
expressa no franco desmonte das políticas sociais mediante negação dos
investimentos necessários à sua implementação, estabelecendo cisões profundas
com as conquistas democráticas da população brasileira.
O Decreto informa que tem como objetivos garantir
os direitos constitucionais de educação e de atendimento educacional
especializado”, promover ensino de excelência aos educandos da educação
especial, em todas as etapas, níveis e modalidades de educação, em um sistema
educacional equitativo, inclusivo e com aprendizado ao longo da vida, sem a
prática de qualquer forma de discriminação ou preconceito, assegurar o
atendimento educacional especializado como diretriz constitucional, para além
da institucionalização de tempos e espaços reservados para atividade
complementar ou suplementar (Art. 6º). Entretanto, tais objetivos e seus
desdobramentos conceituais apresentados como “inovações” configuram-se em
nítidos retrocessos frente às conquistas históricas das Pessoas com Deficiência
que precisam ser alvo de constante reflexão e revisão, além de debate amplo com
a sociedade.
A Conferência Mundial de Educação Especial, em 1994,
deu origem à Declaração de Salamanca, que pode ser evocada para reassumir
compromissos com uma educação inclusiva e não discriminatória. Ela assume,
dentre outros pressupostos valorosos, que escolas regulares, que possuam
tal orientação inclusiva, constituem os meios mais eficazes de combater
atitudes discriminatórias, criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma
sociedade inclusiva e alcançando educação para todos; além disso, tais escolas
provêm uma educação efetiva à maioria das crianças e aprimoram a eficiência e,
em última instância, o custo da eficácia de todo o sistema educacional (Declaração
de Salamanca, 1994, Art. 2).
A desresponsabilização do Estado e da sociedade na
garantia da educação inclusiva como modalidade de ensino para pessoas com
deficiência constitui prática discriminatória. Além de ter como princípio a
ideia de que tais sujeitos são incapazes de participar do espaço escolar,
evidencia-se uma conduta de não reconhecimento e de não responsabilização pela
supressão das barreiras que produzem as limitações de participação plena,
efetiva e em igualdade de condições às demais pessoas. Conforme a Declaração de
Salamanca, quanto ao dever do Estado, faz-se necessário atribuir a mais
alta prioridade política e financeira ao aprimoramento de seus sistemas
educacionais no sentido de se tornarem aptos a incluírem todas as crianças,
independentemente de suas diferenças ou dificuldades individuais (Declaração
de Salamanca, 1994, Art. 3).
O Decreto nº 10502/2020 ignora vozes dissonantes de
famílias e movimentos civis que deveriam, através de ações participativas,
discutir a importância da Inclusão como conceito orientador e prática possível.
Vale ressaltar que a política por este dispositivo instituída não passou por
discussão ampla com a sociedade e, especificamente, com representantes dos
movimentos de luta pelos direitos da pessoa com deficiência. A participação
social foi negada e o texto aprovado não condiz com a atualização esperada para
a política anterior, posto que não considera os marcos normativos aprovados e
em vigor na última década – todos em defesa da educação inclusiva como
modalidade de ensino.
Pesquisas como a de Glat e Pletsch (2011) apontam
que a Política Nacional de Educação inclusiva tem sido desrespeitada. Em
pesquisa recente, Calheiros e colaboradores (2019) reafirmam em uma das
conclusões que quando se amplia a rede de interações, maiores são as
possibilidades de trocas e de aprendizagem, de valorização das práticas. Diante
dos desafios relacionados às crianças com deficiência, faz-se necessário gerar
mecanismos de confiança e troca entre saberes da saúde, da educação e das
famílias. Há que se questionar como acionar o que já existe em políticas
públicas para que possa incorporar programas como esse, em que as famílias e
suas crianças são de fato protagonistas dessas relações. Somente dessa maneira
é possível falar sobre inclusão e integralidade (pg. 12).
À luz dessas considerações, este coletivo de
pesquisadores reafirma o seu repúdio ao Decreto 10.502, ressaltando que o
caminho não é alterar a política de inclusão vigente no sentido de
retrocedê-la, mas compreender tecnicamente como transformar os problemas em
oportunidades, aprendizados e afirmação da inclusão. Esta nota pretende
endossar as vozes de tantas outras entidades públicas, da sociedade civil e do
movimento das pessoas com deficiência que imediatamente se levantaram
contrárias a esta normativa que fere princípios constitucionais. Repudiamos
qualquer retrocesso que tente impedir o avanço na direção de uma sociedade mais
justa e plural. A saída não é retroceder, mas avançar, com financiamento,
pesquisas e conhecimento e, principalmente, com a implementação de políticas
públicas de inclusão social. Neste sentido, reiteramos também a urgente revogação
da Emenda Constitucional Nº 95, de 15 de Dezembro de 2016, dispositivo que
inviabiliza a implementação de práticas inclusivas, transversais e integrais
mediante o congelamento de gastos sociais pelo período de vinte anos.
Referências
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
[2020]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em 01 out. 2020.
BRASIL. Lei Nº 13.146, de 6 de Julho de 2015. Lei
Brasileira de Inclusão (LBI). Brasília, Diário Oficial [da República Federativa
do Brasil, 2015.
GLAT, Rosana; PLETSCH, Marcia Denise. Inclusão
escolar de alunos com necessidades. educacionais especiais. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2011, 162p.
SÁ, Miriam Ribeiro Calheiros de ; VIEIRA, Ana
Carolina Dias ; CASTRO, Barbara S Madeira ; AGOSTINI, Olivia ; SMYTHE, Tracey ;
KUPER, Hannah ; MOREIRA, Maria Elizabeth Lopes ; MOREIRA, Martha Cristina Nunes
. De toda maneira tem que andar junto: ações intersetoriais entre saúde e
educação para crianças vivendo com a síndrome congênita do vírus Zika. Cad. Saúde Pública [online]. 2019, vol.35, n.12 [citado
2020-10-02], e00233718.
Apoiam esta nota:
NIPPIS – Núcleo de Informação, Políticas Públicas e
Inclusão Social (Fiocruz-Unifase)
Inclusive – Inclusão e Cidadania
Movimento Down
Nit Down
Chat21 – Central de Humanização e Acolhimento
A trissomia do Amor 21
M.A.E. Mães e amigos especiais
Inclusivamente
Associação Angelman Brasil
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