RETROCESSOS
Reforma proposta pelo governo Temer continua a
avançar sob gestão Bolsonaro. Movimentos e pesquisadores se mobilizam para
impedir retrocessos na inclusão de pessoas com deficiência em escolas regulares
Por Redação
RBA Publicado 09/02/2020 - 10h15 Marcello Casal Jr./EBC
São Paulo – O número de matrículas na educação especial vem crescendo a cada ano para todas as etapas de ensino da rede pública brasileira, aponta o Censo Escolar de 2019, divulgado no último dia 31. No ano passado, o Ministério da Educação (MEC) registrou aumento de 5,9% nas matrículas de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades (superdotação). Em 2018 o censo já mostrava crescimento de 33,2% em relação a 2014, reforçando o total de 1,3 milhão de alunos matriculados no ano passado.
O crescimento não deixa de sugerir que a educação
básica brasileira vem ficando mais inclusiva, apesar de esforços em contrário
desde o governo de Michel Temer. No ano em que o número de matrículas deu um
salto, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (Secadi) tentava desarticular a Política Nacional de Educação Especial
na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI).
A proposta alterava esse instrumento de inclusão nas
escolas públicas para privilegiar a inserção de alunos com deficiência em
escolas especiais, mas a imediata reação da academia, movimentos e
entidades que defendem a educação inclusiva fez com que à época o MEC recuasse
da decisão.
Verniz democrático
Agora, no entanto, o governo Bolsonaro faz levantar
novamente a preocupação entre os representantes que defendem a inclusão nas
escolas, uma vez que o projeto de Temer não escapa da linha de “desmonte da
educação” que tem o governo, alerta a pesquisadora Meire Cavalcante, da
Faculdade de Educação e do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e
Diferença (Leped) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“A Secadi foi extinta por esse governo, no começo do
ano passado, assim que Bolsonaro tomou posse, só que a equipe que estava
no governo Temer foi mantida para dar continuidade ao projeto de desmonte da
educação inclusiva”, explica a pesquisadora em entrevista aos jornalistas
Marilu Cabañas e Glauco Faria na Rádio Brasil Atual.
As investidas contra a PNEEPEI começaram em abril de
2018, quando o governo Temer, por meio da Secadi, convocou uma reunião para
anunciar a proposta de reformar as diretrizes da política nacional de inclusão,
sob o principal argumento de que era preciso “atualizá-la” – mesmo sendo ela um
instrumento reconhecido como inovadora pela Organização das Nações Unidas
(ONU), por exemplo.
No cerne da reforma, o governo propunha a retirada
da “perspectiva da educação inclusiva” já no nome da política nacional, uma
tentativa, de acordo com Meire, de retomar classes e escolas especiais. “O
governo Michel Temer era um governo ilegítimo, não foi eleito, e se configurou
como um governo às sombras, que tentou fazer mudanças em uma política importante
para o país fingindo um verniz de democracia, e esse governo (Bolsonaro) que,
apesar de ter sido eleito, tem um caráter absolutamente autoritário, está
mantendo a linha”, adverte.
Não à toa, destaca a pesquisadora, foram selecionadas apenas algumas entidades para participar de uma reunião convocada pelo MEC em 2018 para debater a questão. “(Participaram) várias entidades que se beneficiam da segregação de seres humanos e defendem escolas e classes especiais porque acreditam nesse modelo que tem a deficiência como algo relacionado à incapacidade e também porque se beneficiam política e economicamente da segregação”, revela.
De acordo com a pesquisadora, a suposta
“atualização” gira em torno, na verdade, do financiamento público,
principalmente os recursos alocados pelo Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Desde 2008, quando a PNEEPEI foi
implementada e as escolas públicas passaram a incluir os alunos com
deficiências nas salas de aula, além de receber a verba regular e
constitucional do Fundeb, o governo também investe recursos do fundo para
garantir o chamado Atendimento Educacional Especializado (AEE), com
profissionais capacitados no atendimento à pessoa com deficiência, mas no
sentido de complementação do papel da escola comum a todos.
“E essas entidades que defendem a segregação de
seres humanos em classes e escolas especiais querem receber essa dupla
matrícula, mas ela é um motor para inclusão, não para segregação, então elas
querem receber como escola e como atendimento educacional especializado”,
ressalta Meire, acrescentando que essa verba também atrai o interesse
de prefeituras e políticos que a utilizam para também segregar e
manter nichos eleitorais. “Esse discurso que coloca a pessoa com deficiência
como incapaz ou ‘pobrezinha’ é justamente o que nós queremos extinguir”,
critica.
Eliminar barreiras faz a deficiência deixar de ser
fator de exclusão
A atual PNEEPEI, que vem garantindo a inclusão de
alunos com deficiência nas escolas brasileiras, traz uma mudança no
entendimento sobre a deficiência estabelecido décadas atrás. A pesquisadora do
Leped da Unicamp destaca a transição do modelo médico para o modelo social
atual.
Na década de 70, por exemplo, a deficiência era
entendida por uma lógica de curas e tratamentos, e foi a luta do próprio
movimento das pessoas com deficiência, ao longo desse processo, que conseguiu
realizar a transição para o chamado modelo social.
O movimento conseguiu garantir que lugar da pessoa
com deficiência era na escola regular, e não em uma escola especial que
agrupava várias terapias com atividades pedagógicas que, ao fim, tinham um
papel secundário. Em 2008, esse direito foi garantido, acompanhando a convenção
da ONU que traz um novo conceito para deficiência, como destaca a pesquisadora.
“O conceito de deficiência ficou como o que resulta
do contato entre quem tem deficiência e a barreira do contexto, e se você
elimina as barreiras, a deficiência deixa de ser um fator que exclui”,
observa. “A educação especial passa então ser o apoio, o alicerce para a
inclusão. E isso incomodou muito, porque muitas entidades passaram a perder
matrículas com dinheiro público porque a escola ao lado da casa da criança, que
é o que está previsto na Constituição, passou a ofertar, não só a
escolarização, mas também o apoio especializado”, ressalta.
Atualizar é aperfeiçoar
A transição do modelo social para o dos direitos
humanos, em processo hoje, acaba por reforçar que a deficiência é uma condição
do sujeito, mas que não determina quem ele é ou que ele pode fazer.
“A gente vai mostrando que o que precisa estar
em xeque é como a escola funciona, como ela está estruturada e qual é o
entendimento que a gente tem de estudante ideal. E esse é um problema muito
sério, porque não só discrimina e exclui as pessoas com deficiência, mas exclui
também as crianças que estão em situação de vulnerabilidade.”
Diante disso, Meire explica que qualquer “atualização”
na política nacional de inclusão deveria ser para monitorar e aperfeiçoar sua
implementação. “O desmonte vai por aí, porque eles viram que o AEE é muito
potente para que todas as escolas tenham o serviço especializado sem precisar
segregar ninguém e muitos menos alocar serviços públicos em instituições
privadas”, pontua.
A discussão da reforma de Temer está desde 2019 no
âmbito do Conselho Nacional da Educação (CNE) e é também acompanhada
pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público
Federal. As entidades, movimentos e representantes agora ficam atentos ao governo Bolsonaro que confirma o mesmo
interesse de Temer por repassar investimentos públicos às iniciativas privadas.
“O MP está atento porque, apesar de ser um governo
eleito e ter a caneta para fazer as mudanças que são legítimas que o Executivo
faça, eles não podem tudo, não podem escrever de novo a Constituição Federal e
muito menos achar que têm o direito de ferir as normas maiores do país”,
destaca a pesquisadora.
Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2020/02/atualizacao-politica-de-inclusao-interesses-economicos/
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