RETROCESSO E SEGREGAÇÃO
Governo Bolsonaro retoma classes especializadas, o que “valoriza a segregação”. Política lançada nesta semana atende mais os interesses econômicos do que os direitos humanos
Por Redação RBA Publicado 02/10/2020 - 12h50 Arquivo EBC
"Ao invés da gente valorizar o que cada um é, a
gente está tentando enquadrar, moldar pelos meios de processos terapêuticos.
Não é esse o lugar da escola", adverte ativista sobre a PNEE 2020
Foto: https://respeitarepreciso.org.br/ativista-pela-inclusao-escolar-conheca-mariana-rosa-mae-da-alice/
São Paulo – A política do governo Jair Bolsonaro para pessoas com deficiência retrocede 30 anos, afirma a ativista do coletivo Helen Keller, Mariana Rosa. Lançada na quarta-feira (30) pelo governo, a nova Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (PNEE 2020) tem recebido críticas por parte de diversas entidades que lutam pelos direitos das pessoas com deficiência. Instituída em decreto n° 10.502 assinado pelo presidente, a PNEE 2020 pode abrir margem para que as escolas regulares adotem uma postura discriminatória. Um dos objetivos da proposta é ampliar o atendimento educacional especializado, ou seja, espaços isolados para estudantes com deficiência.
A medida viola a Convenção Internacional dos
Direitos da Pessoa com Deficiência, assinada por 160 países, em 2007, incluindo
o Brasil. Além de ferir o Decreto 6.949 de agosto de 2009, que deu à
Convenção força de lei. E passa por cima da Lei de Brasileira de Inclusão, como
elenca a ativista pelo direito à inclusão e integrante do coletivo Helen
Keller, Mariana Rosa em entrevista a Glauco Faria, do Jornal Brasil Atual.
O texto do decreto determina que as famílias poderão
escolher em que instituição de ensino a criança pode estudar. Estabelecendo
desde escolas regulares inclusivas, às especiais ou bilíngue de surdos. Mas, na
prática, essa escolha tende a não existir, como explica Mariana.
Segregando e excluindo
“Você teria uma escolha se a gente tivesse um
investimento sistemático e importante na qualificação da educação, dos
professores, de sua remuneração, na gestão democrática das escolas, na
acessibilidade, nos recursos. Aí a escola estaria muito boa, a escola pública,
regular, estaria boa o suficiente e a gente poderia escolher. Agora, uma vez
que existe o projeto de desmonte da escola pública, que o que estava previsto
na Política Nacional de Educação Especial, na perspectiva da educação
inclusiva, que também tem 12 anos, não foi cumprido totalmente, então nós vamos
escolher o quê? Nós nem fizemos o dever de casa, de implantar o que estava
previsto por essa política lá atrás. Estamos decidindo dar um passo 30 anos
atrás, sem que a gente tenha avançado a ponto de poder escolher”, contesta a
ativista.
Envolvendo os ministérios da Educação e da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos, a proposta não garantiu o mesmo espaço às
instituições que representam as pessoas com deficiência. E foi tomada “sem qualquer
respaldo democrático”, como frisa Mariana.
Mãe de uma criança com deficiência, a ativista pode
afirmar que “a sociedade e educação brasileira têm muito mais experiência em
segregar, excluir do que incluir”. Mariana conta que, mesmo com a vigência da
PNEE desde 2008, ao menos seis escolas negaram uma matrícula à sua filha. A
prática, antes contraria à lei, agora ganha brecha por conta do decreto de
Bolsonaro.
“Você imagina que a escola podendo dizer ‘olha, não
estou preparado, vai para essa escola especial que lá eles podem’. É claro que
ela vai ser conduzida para uma escola especial. Então, é uma falácia a gente
falar que vai ter escolha, não vai ter escolha, nunca foi sobre isso”,
aponta.
Escola é para ser escola
De acordo com a ativista, é a inclusão das pessoas com deficiência que fica em
risco. Ela, por exemplo, “que seria talvez uma família clássica que
encaminharia a filha para a escola especializada, porque minha filha tem grande
nível de dependência. Ela não anda, não fala, precisa de apoio para todas as
atividades cotidianas, não é muito óbvia a maneira como ela constrói o
conhecimento e se comunica”, como relata, mesmo assim fez questão de matricular
a criança em uma escola regular, porque é a instituição, como garante, “que tem
que melhorar”.
“Eu quero que ela esteja na escola regular, e que
essa escola pública, gratuita, laica e de qualidade esteja à altura dela”,
destaca. “A escola que tem que melhorar e não retroceder, piorar, lotear a
educação e segregar as pessoas. O que vamos aprender com isso como sociedade?
Que temos que apartar alguns tipos de diferença? É isso que a gente quer?”,
questiona Mariana.
“Essa é jogada que valoriza o processo de
segregação, que é inclusive, até hoje pelo menos, inconstitucional, além de ser
imoral, discriminatório, capacitista e violador de direitos”, ressalta. A nova
política fica agora a cargo dos entes federados, que podem escolher de forma
voluntária se vão aderir ou não. Aos que escolherem, o governo Bolsonaro já
declarou que dará incentivos. Sem a devida valorização da escola pública, a
opção da PNEE saltará aos olhos, preveem as entidades.
Interesses econômicos
Esse cenário já havia sido advertido pela RBA quando,
em reportagem no início do ano, a pesquisadora Meire Cavalcante, da Faculdade
de Educação e do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença
(Leped), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), alertava que o governo Bolsonaro daria continuidade ao desmonte do PNEE iniciado
ainda na gestão de Michel Temer. À época, já destacava a pesquisadora, que o
que estava em jogo era o interesse de determinadas instituições “que se
beneficiam da segregação de seres humanos e de classes especiais
economicamente”.
Mariana concorda. “Tem muitas misturas aí e no final
das contas não é sobre direitos humanos, os direitos da pessoa com deficiência.
É sobre interesse econômico”, garante.
A sociedade que queremos
“Eu compreendo as famílias de crianças com
deficiência que encontrem respaldo e apoio nas instituições especializadas, porque
lá, as crianças e jovens têm atendimento de fonoaudiologia, de fisioterapia e
terapia ocupacional. Mas a escola tem que ter o lugar de escola. Ela é o lugar
de ensinar e de aprender. Se gente substituir isso por uma vivência
terapêutica, a gente está passando uma mensagem para a sociedade de que as
pessoas com deficiência não aprendem, de que na verdade elas precisam ser
tratadas para que possam performar dentro de um determinado padrão que foi
estabelecido”, adverte a ativista e integrante do coletivo Helen Keller.
“Em vez da gente valorizar o que cada um é, a gente
está tentando enquadrar, moldar pelos meios de processos terapêuticos. Não é
esse o lugar da escola, o lugar da escola é de valorizar a diferença, de
aprender e conviver com ela. E para fazer o tratamento terapêutico, que é
importante, a gente recorre ao SUS (Sistema Único de Saúde) e ao SUAS (Sistema
Único de Assistência Social)”, finaliza na Rádio Brasil Atual. Mesmo com o
decreto, os ativistas, entidades comprometidas e as pessoas com deficiência
continuam na resistência frente a esse processo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário